segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Cerâmica com 2530 anos descoberta nos Açores



A peça, encontrada em construção megalítica na zona da Grota do Medo, na ilha Terceira, é mais uma prova de que houve uma presença humana nos Açores muito antes da descoberta oficial do arquipélago pelos portugueses, em 1431

Uma peça de cerâmica extraída de uma cavidade cilíndrica numa construção megalítica na zona da Grota do Medo, a norte de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, foi fabricada há cerca de 2530 anos, revela um artigo publicado na revista holandesa de divulgação científica "Archeologie Magazine".

Os autores do artigo científico são António Félix Rodrigues, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e do Ambiente da Universidade dos Açores, e o investigador independente holandês Henk van Oosten, que se tem dedicado ao estudo dos povos do mar. A datação da peça cerâmica foi feita por carbono 14 pela empresa norte-americana Beta Analytic Lab (Miami, Flórida), com uma margem de erro de mais ou menos 30 anos. E trata-se de mais uma prova de que houve uma presença humana nos Açores muito antes da descoberta oficial do arquipélago pelos portugueses em 1431, tal como o Expresso tem vindo a noticiar nos últimos anos.

António Félix Rodrigues argumenta que esta descoberta "aponta mais uma vez para a presença nos Açores de uma cultura atlântica da Idade do Bronze e da Idade do Ferro, que ia do Mediterrâneo à Galiza". A cerâmica "é semelhante à terracota, foi seca ao sol e é feita de argila, resina, cinza de madeira, erva para lhe dar consistência e pequenos pedaços de obsidiana moídos", adianta o professor, confirmando que os materiais utilizados "são de origem local".


Mas qual era a origem desta cultura ibero-mediterrânica? "Não sabemos ainda localizá-la em termos geográficos, mas tudo indica que é uma cultura com traços comuns à cultura megalítica da Península Ibérica e da Grã-Bretanha". A construção de onde foi extraída a peça de cerâmica, onde se se encontram mais peças em vários orifícios cilíndricos, "tem uma idade mínima de 2530 anos, mas pode ser mais antiga", admite o investigador da Universidade dos Açores. Aliás, na zona da Grota do Medo onde está a construção "existem vários dólmenes comparáveis aos dólmenes identificados no continente europeu", refere o artigo científico publicado na "Archeologie Magazine".

COLUMBÁRIO ÚNICO NO MUNDO
O artigo destaca também o hipotético columbário identificado na Ribeira dos Bispos, na ilha de São Miguel, "com uma tipologia e envolvência semelhantes aos que encontramos na região do Mediterrâneo", explica António Félix Rodrigues. Mais precisamente, "tem uma tipologia púnica (cartaginesa) e é único no mundo, não há nada igual". Foi escavado numa só pedra (monólito) muito dura, tem duas portas, nichos de tamanhos diferentes no seu interior e é o segundo columbário identificado nos Açores. O primeiro está localizado na ilha Terceira, numa caverna artificial escavada na encosta de uma montanha, e é também de tipologia parecida com outros conhecidos em Itália e em toda a região do Mediterrâneo. O columbário é um cemitério onde são depositadas as urnas com cinzas dos mortos depois da cremação.





Além destas revelações, a publicação na revista holandesa faz um balanço das descobertas arqueológicas feitas nos Açores ao longo dos últimos anos, que apontam para que o arquipélago tenha sido visitado e ocupado muito antes da chegada dos portugueses. "A grande conclusão perante todas estas descobertas é que os povos que habitaram os Açores tinham ligações com outras regiões, isto é, havia uma navegação no oceano Atlântico, viagens longas, em épocas anteriores", sublinha o investigador.

Em todo o caso, apesar dos múltiplos vestígios arqueológicos nos Açores, parece que os povos que visitaram e habitaram as ilhas antes dos portugueses acabaram por abandoná-las. "Podem ter existido vários períodos de ocupação e na Antiguidade era um fenómeno comum nas ilhas as culturas humanas desaparecerem de repente", recorda Félix Rodrigues. "Não sabemos bem porquê, mas provavelmente devido a catástrofes naturais como erupções vulcânicas, sismos, secas, e a outras causas". Mesmo nos últimos 500 anos o fenómeno repete-se. Por exemplo, a ilha do Corvo, a mais pequena e ocidental dos Açores, "já teve 2500 habitantes, já foi quase despovoada e hoje tem 430 pessoas".

UMA PRESENÇA HUMANA LONGA E ANTIGA
A quantidade de vestígios existentes "indicamque a presença desses povos nos Açores foi longa e não esporádica". É o caso típico do sistema de relheiras, sulcos paralelos no solo rochoso provocados provavelmente pela passagem continuada das rodas de carros puxados por pessoas ou animais, que atravessam todas as ilhas do arquipélago e são semelhantes a outros existentes na região do Mediterrâneo, na Península Ibérica, nas ilhas Canárias em vários países da Europa. "As mais visíveis e extensas são as da ilha de Malta e as dos Açores", constata Félix Rodrigues. A matéria orgânica e cinzas provenientes de uma erupção vulcânica que cobria uma dessas relheiras na ilha Terceira tem cerca de 1000 anos, de acordo com uma datação feita por carbono 14, o que significa que a relheira é mais antiga.

O artigo científico da "Archeologie Magazine" salienta que nos últimos anos "os arqueólogos fizeram novas descobertas que apontam para uma história dos Açores mais antiga do que se esperava". Estas descobertas "foram apresentadas em várias conferências internacionais e publicadas nos últimos dez anos", mas enfrentam um problema: "por causa da falta de financiamento e de interesse das instituições públicas, a sua datação não pode ser feita em todos os casos".

Além da peça cerâmica com 2530 anos, dos dois columbários e das relheiras, a publicação destaca as cavernas artificiais escavadas no Monte Brasil, na baía de Angra do Heroísmo, semelhantes a hipogeus (monumentos funerários subterrâneos), onde se encontram canais e pias para a circulação de água proveniente do monte, bem como uma piscina para banhos cerimoniais.

Na ilha do Pico concentram-se dezenas de pirâmides em pedra conhecidas por maroiços, que são semelhantes a outras nas ilhas Canárias, Sardenha, Galiza, Reino Unido e México. A maioria estão orientadas na direção noroeste-sudeste. Foram feitas escavações numa galeria no interior de uma das pirâmides, tendo sido encontrados materiais comparáveis a outros da Idade do Bronze descobertos na Europa (datados de há 3200 a 5000 anos), como anzóis, raspadores, conchas e carvões.

in expresso.pt

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