quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Nuno Sá mergulhou “fundo” no maravilhoso mar português

“Eu queria era ser o Cousteau”. O fotógrafo e realizador subaquático respira e fala debaixo de água – e cresceu a ouvir o homem de barrete vermelho que dizia que “o mar é o esgoto universal”.


- Queres vir comigo até aos 1000 metros?
- Sim, claro!
- Óptimo. Então sê bem-vindo à nossa pequena nave-espacial.

Mar, a Última Fronteira, terceiro episódio. Nuno Sá já está a bordo do LULA1000, olhos siderados na vigia esférica de 1,4 metros de diâmetro do submersível da Fundação Rebikoff Niggler construído peça a peça por Joachim e Kirsten Jakobsen para resistir à pressão a mil metros de profundidade (cem quilos de pressão por centímetro quadrado, que é como quem diz “dois Airbus 380 totalmente equipados e com os tanques de combustível cheios"). “Já estiveram mais pessoas no espaço do que a esta profundidade”, explica à Fugas Nuno Sá, que até então anotara um recorde de uns bons 60 metros no seu mergulho mais profundo. O fundo do catamarã abriu-se ao largo da ilha do Faial, Açores, junto ao Banco Condor para o submarino, único no mundo do seu género, submergir. Silêncio. Negrume. Vida quase alienígena – um cenário tão indefinível e imenso como no Abismo, de James Cameron. “Isto realmente mostra que o mar é a última fronteira do conhecimento. Sabemos mais sobre a superfície da Lua do que das zonas mais profundas dos nossos oceanos.”


Nuno, confessa, estabeleceu “contacto tardio com o mar”. Começou a mergulhar com 21 anos. “Mesmo assim já foi há 21 anos”, sorri o fotógrafo e cineasta subaquático que realizou os seis episódios de Mar, a Última Fronteira que a RTP (em parceria com o Oceanário de Lisboa e a Fundação Oceano Azul) apresenta como “a maior série documental realizada em Portugal sobre a vida marinha”. 1648 milhas navegadas, onze ilhas, quatro montes submarinos, a segunda maior montanha submersa da Europa. Uma centena de mergulhos. Dos zero aos mil metros de profundidade.

Tirou o primeiro curso de mergulho no primeiro ano do curso de Direito na Universidade Católica. Começou a mergulhar em Sesimbra ("conseguirmos respirar debaixo de água já era uma excitação"). Licenciou-se, mas nunca exerceu. “Na minha cabeça já sabia que ia viver em contacto com o mar e que nunca ia meter os pés no tribunal”. Meteu-os nos pés de pato – não os tirou até hoje.

A namorada de então, mulher e mãe dos seus filhos hoje, acompanhou-o numa viagem à volta do mundo, uma espécie de mergulho sabático (Austrália, Nova Zelândia, Tailândia, Japão...) com uma paragem mais prolongada nos Açores, onde foram infectados pelo “bichinho” de um “paraíso na terra intocado”. “'Se calhar vamos ficar por aqui'”, recorda Nuno. “Os astros alinharam-se. Tudo correu bem.” Dois ou três meses depois, Nuno Sá já tinha entrado na Universidade dos Açores (em Biologia Marinha), ao mesmo tempo que trabalhava numa empresa de observação de cetáceos ("acho que nunca tinha visto uma baleia na vida") e num centro de mergulho. Já tinha o sonho ("o mesmo de toda a gente que cresceu a ver os documentários do Jacques Cousteau"), que era ser fotógrafo ou câmara subaquático. “Eu queria era ser o Cousteau”, confessa Nuno, que por volta de 2003 começou a tirar fotografias com baleias “para mostrar à família e aos amigos advogados que passavam o dia enfiados no escritório”. 



Uma notícia no Açoriano Oriental mudaria a sua vida. A notícia dizia que o fotógrafo australiano Wade Hughes tinha sido premiado como Shell Wildlife Photographer of the Year com uma fotografia de uma baleia-comum nos Açores. “Nunca tinha concorrido e tentei.” Foi em 2008. E ganhou. De repente foi conquistando distinções internacionais e colaborações com revistas da especialidade. De repente as DSLR filmavam. E Nuno, até hoje “completamente freelancer”, estava lá, no “hotspot”.

“Investi numa RED e comecei a ser contratado por canais de televisão (BBC, National Geographic, Discovery...) para fazer trabalhos. Durante os primeiros anos só trabalhava nos Açores. Depois comecei a ser contratado para trabalhar no mundo todo. Fiquei conotado como o tipo que filma baleias e tubarões”, explica Nuno, que em 2019 mergulhou, por exemplo, na costa pacífica colombiana para filmar baleias de bossa e na Patagónia argentina para filmar baleias-francas boreais. “Tenho ido para sítios que desconhecia completamente. Infelizmente ainda ninguém me mandou para a Antárctida, que está na minha check list.”



Com Mar, a Última Fronteira o objectivo era “surpreender os portugueses”. “Fazer o primeiro grande projecto sobre a nossa vida marinha. Filmar todos os sítios por mais remotos que fossem. A costa continental portuguesa inteira, sete das nove ilhas dos Açores, o arquipélago inteiro da Madeira.” A ideia – mais ou menos a mesma que levava Cousteau a dizer que “as pessoas protegem o que amam” – era “deixar os portugueses orgulhosos por termos esta vida marinha – por ainda termos esta vida marinha. Claro que é um projecto de conservação. Não queremos que o projecto seja catastrófico e negativo. Queríamos que os portugueses se interessassem pela vida marinha e se preocupassem em conservá-la.”

 

O formato? Mais Cousteau do que David Attenborough, menos locução de imagens captadas e mais aventura e reacções em tempo real (obrigado full face mask, máscara que permite comunicar debaixo de água e que transporta os espectadores para o fundo do mar). “Torna tudo mais espontâneo. As pessoas sentem que estão debaixo de água connosco. Se acontece o imprevisto, elas acompanham as sensações e as emoções. As pessoas passam pelas aventuras connosco. Se há um problema e somos atacados por um peixe-porco, elas vivem isso.”

Habituado a dar palestras em escolas ("os miúdos ficavam muito curiosos quando eu dizia que o coração de um tubarão-baleia é do tamanho de um Volkswagen Carocha ou que as artérias são tão largas que um ser humano pode nadar lá dentro"), Nuno Sá aproveitou a série televisiva para apresentar especialistas e para mergulhar com pessoas que são uma mais-valia para a história que quis contar, para falar do mar, que Jacques-Yves Cousteau, a bordo do seu Calypso, um dia apelidou de “esgoto universal”. “Mostrar o impacto do ser humano nos nossos oceanos”, resume Nuno.

“A vegetação já foi arrancada do fundo pelas redes, pelas âncoras, pela movimentação e pela pressão humana, pela poluição, pelo excesso de pesca, por tudo. No Banco Gorringe, a cerca de 120 milhas da costa, consegue-se ver o que era o mar antes da pesca industrial e o que é um mar saudável e prístino. Junto à costa o mar está sobre-explorado, sobrepoluído, sobrepescado – a sobrepesca é um grande problema. Estivemos um ano e meio a correr todas as reservas marinhas do país. E estamos a tratar muito mal os nossos recursos naturais.”


in  publico.pt

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