Tubarão-frade: um turista acidental nos Açores
O tubarão-frade é poucas vezes observado nos Açores, mas isso pode apenas querer dizer que a espécie é ainda mal conhecida…
Texto e Fotografias: Nuno Sá
o dia 10 de Fevereiro de 1956, num dos meses mais frios de que há memória em Portugal e que levaria inclusivamente neve ao Algarve, John Collins, telegrafista de profissão, estava prestes a assistir a um acontecimento inédito nos Açores. Do corpo de um enorme cachalote que ocupava a rampa de desmanche da fábrica da baleia do Porto Pim, no Faial, foi retirada uma presa inesperada: um exemplar de tubarão-frade, o segundo maior peixe do mundo. Este tubarão não era conhecido como presa de cachalote e os seus avistamentos eram uma raridade nos Açores. A primeira ocorrência documentada da espécie no arquipélago fora descrita apenas em 1939. Em que circunstâncias extraordinárias se encontrava ali aquele exemplar?
Meio século mais tarde, ao largo da ilha de São Miguel, foi pela primeira vez fotografado um exemplar vivo desta espécie no arquipélago. De permeio, segundo documentaram os biólogos Filipe Porteiro e Pedro Niny, alguns tubarões-frade arrojaram em São Miguel e na Terceira, mas os avistamentos deste gigante no arquipélago dos Açores continuaram a ser acidentais. Observado com alguma regularidade junto à costa continental portuguesa, o animal continuou a ser visto nos Açores como uma raridade.
O nome tubarão-frade é uma derivação da sua designação original – tubarão-peregrino. Este nome resulta do seu hábito de deambular, aparentemente sem rumo definido, à superfície da água. O nome científico Cetorhinus maximus provém do grego e designa um monstro marinho de grande rostro. É provável que esta injusta descrição se baseie na percepção que os primeiros naturalistas tiveram de uma enorme silhueta que pode medir 12 metros de comprimento, muitas vezes observada junto à superfície, com a sua boca de tal forma aberta que o nariz parece saltar fora de água.
Actualmente, porém, sabe-se que as deslocações vagarosas deste animal nos dias soalheiros próximo da costa e junto à superfície se devem ao facto de o tubarão-frade, tal como outros grandes peixes cartilagíneos, ser um tubarão filtrador que se alimenta de plâncton, principalmente, de crustáceos, pequenos peixes, larvas e ovos de peixes.
Na chegada da Primavera, inicia-se o seu ciclo biológico nas águas temperadas frias. O progressivo aumento da temperatura desencadeia um frenesi de produção de organismos microscópicos que compõem o fitoplâncton, multiplicando-se em densidades astronómicas e originando explosões de vida. Os tubarões-frade perseguem esta abundância primaveril próximo das costas. Ao seguirem selectivamente manchas de maior densidade de plâncton, podem filtrar o equivalente a cinco mil toneladas de água por hora. E é nessa fase, em que navegam perto da superfície, que são avistados.
Em terra, seria impossível que um animal do tamanho de um autocarro e com o peso equivalente a quatro veículos ligeiros passasse despercebido nas suas deambulações migratórias. Nas profundezas do mar, porém, o tubarão-frade é uma gota de água, um gigante tímido e desconhecido. Durante décadas, soube-se pouco sobre a sua distribuição e comportamento e o pouco que se sabia resultava de encontros ocasionais em alguns sítios historicamente visitados por esta espécie no final da Primavera e início do Verão, a que se seguiam longos meses de ausência.
A quebra do volume de zooplâncton nas zonas costeiras era apontada como a causa da migração no Inverno dos tubarões-frade para águas mais profundas. Chegou a ser levantada a hipótese de estes animais hibernarem durante meses, fazendo uso das reservas energéticas do seu enorme fígado. Também a informação sobre a sua anatomia era tão escassa que a maioria dos estudos se baseava em dados recolhidos por dois cientistas (Leonard Matthews e Hampton Parker) em 1947. A convite do dono de uma fábrica pesqueira na ilha escocesa de Soay, os dois britânicos dissecaram e estudaram dez tubarões-frade, recolhendo dados que, 50 anos mais tarde, ainda serviam de fundamentação para estudos científicos. No entanto, a ajuda à ciência desta vez veio literalmente do céu.
No dia 10 de Setembro de 2007, um satélite da NOOA (Agência Norte-Americana para os Oceanos e Atmosfera) captou informações transmitidas de um emissor que flutuava no Atlântico Norte. Oitenta e dois dias antes, uma embarcação licenciada pelo Departamento de Agricultura, Florestas e Pescas da ilha de Man aproximara-se de um tubarão-frade fêmea com oito metros de comprimento. Um dardo foi projectado da embarcação, alojando-se na base da barbatana dorsal que se projectava da superfície. Ligado por um fio de nylon a este dardo, encontrava-se um aparelho colector e emissor de dados programado para se soltar cerca de cem dias mais tarde e emitir dados de temperatura, profundidade e níveis de luz durante este período. Mauvis Gore, o coordenador deste projecto, talvez não sonhasse então com o volume de informação que viria a ser fornecido por um único animal.
Alcunhado Tracy, o tubarão marcado percorreu 9.589km, iniciando a sua viagem no mar da Irlanda, abandonando a plataforma continental, atravessando o Atlântico, passando a norte do arquipélago dos Açores e chegando ao largo da Terra Nova, no Canadá, em apenas 82 dias. A sua rota é a primeira prova da utilização de águas profundas para além da plataforma continental e de uma migração transatlântica das populações de tubarão-frade da Europa e da América, o que leva Pedro Afonso, biólogo do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores especializado em estudos de telemetria, a referir que “as investigações recentes demonstraram que o offshore também é um habitat relevante para esta espécie e que a amplitude desse habitat é bem maior do que se pensava”.
Os dados relativos à migração vertical deste tubarão foram igualmente surpreendentes. Após permanecer em águas pouco profundas durante cinco dias, Tracy seguiu para profundidades na ordem das duas centenas de metros, nas quais se manteve durante dez dias. Ao chegar ao fim da plataforma continental, realizou mergulhos até uma profundidade recorde de 1.264 metros e passando pelo menos uma dúzia de vezes a profundidades superiores a mil metros. A informação sugere uma procura activa de alimentos na coluna de água, uma vez que é aí que existem os copépodes mesopelágicos, as suas presas naturais. Os últimos 40 dias foram passados junto à superfície numa zona abundante da sua presa favorita, o pequeno copépode da espécie Calanus finmarchicus, de apenas 5mm de comprimento.
É perigoso extrapolar os dados obtidos com um indivíduo para toda uma espécie, porque existe grande plasticidade comportamental entre indivíduos. Pedro Afonso refere mesmo que “o comportamento do mesmo indivíduo pode variar muito ao longo dos anos”. De todo o modo, os dados da rota migratória de Tracy ofereceram mais uma pista para compreender os avistamentos ocasionais da espécie, que se julgava confinada às plataformas continentais. Na verdade, Tracy dispersou-se muito mais do que aquilo que era admitido pela comunidade científica.
Este indício viria a ser suportado um ano mais tarde, em 2009, com a publicação de um artigo mais abrangente, que utilizou a mesma técnica de recolha de dados no Massachusetts, agora aplicada a 25 diferentes tubarões-frade. Os dados recolhidos por satélite pela equipa de Gregory Skomal indicaram que o tubarão-frade é um dos poucos animais marinhos capazes de atravessar o equador durante as suas migrações. Nada entre 200 e 1.000 metros de profundidade, seguindo zonas de termoclinas frias, passando semanas a meses longe do olhar humano, a grande profundidade em águas tropicais. Vários indivíduos marcados no Verão em zonas costeiras nas águas temperadas do Massachusetts atravessaram o equador, permanecendo em locais tão improváveis como a boca do rio Amazonas e orientando provavelmente o seu comportamento em função da disponibilidade de presas.
Os Açores encontram-se provavelmente no limite meridional do seu território de alimentação estival, o que explicaria os avistamentos ocasionais à superfície. Mas para Pedro Afonso há uma hipótese adicional: é possível que a espécie “passe com mais frequência na região mas a grandes profundidades, tal como demonstrado neste estudo com a população americana, ao passo que nas águas do Norte já estará em ‘modo de superfície’”. O biólogo acrescenta: “Está por esclarecer de que forma os comportamentos sociais afectam também as movimentações da espécie.” Por outras palavras, podem existir outras razões que expliquem a presença em habitats profundos que não a alimentação, tais como o acasalamento.
Graças a estes esforços, tem-se hoje como provável que o tubarão-frade se sinta à vontade em águas profundas, tenha capacidade para sobreviver em águas tropicais e realize migrações de um hemisfério para outro. Ao mesmo tempo, estes dados demonstram a necessidade de esforços globais para a protecção desta espécie classificada na “Lista Vermelha da União Mundial de Conservação da Natureza” como “vulnerável” em termos globais e “em perigo” no Atlântico e Pacífico Norte. “Tal como já se demonstrou com várias outras espécies, como a tintureira, é preciso conceber o habitat em toda a sua extensão, na medida em que ele nada muito para lá da plataforma continental, e nas várias profundidades em que ele vive”, comenta Pedro Afonso.
No entanto, talvez o maior desafio para a preservação da espécie seja o preenchimento das lacunas ainda existentes em relação à ecologia da segunda maior espécie de peixe dos nossos oceanos. As descobertas sobre as rotas migratórias dos tubarões-frade obrigaram à revisão de dados que eram tidos como certos em relação a esta espécie, mas ainda há lacunas. Dada a plasticidade de comportamentos e as usuais variações oceanográficas entre anos, quem sabe para onde nadará Tracy no próximo ano?
in nationalgeographic.sapo.pt
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