Insularmente Açorianos
Começo por vos citar o seguinte trecho, que lido, por mim, na obra "A Força da Coragem", da autora René Brown, me motivou a refletir, ainda mais, sobre a influência da insularidade, melhor explicando, a influência do mar, que é água, nas gentes açorianas, gente d'a gente: "A Civilização termina na linha de água. Quando a passamos, todos entramos na cadeia alimentar, e nem sempre no topo" (Hunter S. Thompson).
Ao lê-lo, duvidando, curiosamente, criticando, qualitativamente, e, refletindo, de forma integrada, reconheci a influência que o mar, que, mais uma vez refiro, é água, tem na construção biopsicossocial, cultural, de fé, de contraste, de aventura, de sede de se soltar, paralelamente, simbolizando a sede de se agarrar, de fulminante vulnerabilidade, de arte e artimanhas tão peculiares, de sonhos ferozes em mentes de vozes, de contos vencidos em ditos antigos, de mares com ondas em terras com fendas, de ilhas com voltas regadas por encostas, das nossas gentes. Gentes sopradas pelo vento, brindadas com o sereno da noite e o raio do dia, protegidas com terra, empoleiradas por lagoas, carregadas por terra de vulcões, rodeadas por mares de anciãos, gente com amor, o amor d'a gente.
Confesso que temos tanto de vulneráveis, como de corajosos, sendo que, em perspetiva, a minha, a que reflito, como se de um espelho se tratasse, posso vos dizer que é, no meio da tormenta, que mais vezes encontramos o mar, ou melhor, que ele nos encontra, que é, no meio do caminho sinuoso, que as ondas nos relançam, rumo a terra, que é, no meio da sombra, que o sol e a lua nos iluminam, que é, no meio das gentes, que se encontram os maiores lutadores sem armas de guerra. O poder que nos encarcera, limitando-nos, fisicamente, é o mesmo poder que nos liberta, expandindo-nos, mental, em termos de fé e emocionalmente, ungidos pelo poder espiritual que o Senhor Santo Cristo dos Milagres carrega, por nós, no seu tão enigmático manto. É com coragem que nos levantamos, após uma queda, como também é com coragem que nos ajoelhamos perante uma subida. É com fé que nos encontramos, como também é com fé que nos despedimos. É com medo que nos escondemos, como também é com medo que nos fazemos ver. É com emoção que amamos, como também é com emoção que o deixamos de fazer. É com dor que nos afastamos, como também é com dor que nos juntamos. É com força que embarcamos, como também é com força que desembarcamos. É, sobretudo, com fragilidade que nos amamos, mas é, contudo, com amor que nos tornamos gente, gente de ilha, gente de água, gente de terra, gente de fogo, gente de ar, gente de amor, gente de açor.
Muitas vezes, não conseguimos explicar, por meio das palavras, escritas ou faladas, cantadas ou ouvidas, sonhadas ou vividas, o que é se sentir, insularmente açoriano, porque a energia do mar, que nos rodeia, da natureza que nos tateia, do sol que nos incita, da chuva que nos rega, da humidade que nos cega, da imensidão que nos cerca, é, intimidantemente, bela, leve e transparente, assim como
pesada, fadada e turva, envolta em bruma que esconde, uma alma que corresponde. Duvidar daquilo que nos transforma, mas, principalmente, daquilo que nos constrói, diariamente, é permitir a ser-se açoriano, todos os dias, é permitir que este sentimento de insularidade peculiar nos instigue a procurar, a questionar, a descobrir, a chamar, a amar, amar a gente, como quem ama a si.
No começo da vida de um açoriano, estão as maiores e mais audazes gotas de sabedoria, porque ainda não foram tocadas pelo vento, pela terra, pela gente, mas, indubitavelmente, estão, também, as mais fervorosas e inquietantes gotas de emoção. Ser, estar, viver, crescer, brindar, acenar, sorrir, rir, falar, contar, abraçar e amar, pisando os Açores, é, sem sombra de dúvidas, o maior eco de concretização do sentimento de insularidade. Um povo de tradições, que recebe que nem foliões, uma gente de convenções, que acolhe sem condições, um grupo de ilhas tão diferentes, que abraça como dezenas de continentes. Isto sim é sentir com singularidade a insularidade presente no sentimento dos açorianos, isto sim é crescer em "mares nunca d’antes navegados", como disse o nosso amado poeta Luís Vaz de Camões.
Sinto que a insularidade açoriana e o sentimento incluído nela me tornaram um ser humano grato, próximo, criativo, desenrascado, corajoso, aventureiro, tímido, inconformado, instigador, amarado, crente, fiel, transparente, verde, azul, rochoso, preto, arenoso, ondulado, multifacetado, profícuo e, acima de tudo, amado, por mim, pela minha gente, pela minha ilha, pelo meu mar, pelo meu amor, um amor d'a gente, amor que, mesmo sem muita gente, dobra os intentos da mente.
Se um açor galgou a nossa terra, cravando as suas garras, em solo efervescente, a nossa gente lavrou- a, largando as suas amarras, em almas cheias de gente.
Henrique de Melo
Ribeira Grande, 27 de janeiro de 2019
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