quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Pico, São Jorge e Faial: os trilhos a pé mais bonitos




Percorremos, a pé, alguns dos mais bonitos trilhos de Pico, São Jorge e Faial, três ilhas bastantes próximas, mas com encantos bem diferentes. E não, não é obrigatório ser atleta de alta competição para se fazer à estrada.

Sobre as maravilhas dos Açores já quase tudo foi dito ou escrito, afinal, o arquipélago tem sido, nestes últimos anos, distinguido pelos mais diversas entidades como um destino de eleição mundial a nível do turismo de natureza, paisagístico ou sustentável.
Todas essas palavras pecam, no entanto, por defeito, mal se põem o pé neste território moldado pela força do fogo a meio do oceano Atlântico. Para apreender os Açores é preciso tempo e vontade, pelo que a melhor forma de partir à descoberta destas ilhas é mesmo a pé, como antigamente, calcorreando os inúmeros e imensos trilhos que as cruzam de cima a baixo. Caminhos ancestrais entretanto transformados em pequenas e grandes rotas pedestres, que atraem, também eles, cada vez mais visitantes, vindos um pouco de todo o mundo, em busca dessa ligação telúrica, experiência espiritual ou simples desafio físico – ou talvez um pouco disto tudo, cada um sabe de si.
Foi esse o desafio que nos propusemos, percorrer, durante três dias, alguns dos mais belos trilhos das ilhas do Pico, de São Jorge e do Faial, o chamado Triângulo, talvez o local do arquipélago onde melhor se sente o conceito de arquipélago, pela proximidade entre elas, mas também pelas muitas diferenças entre si.



FAIAL
PASSEIO ENTRE VULCÕES
A primeira grande erupção, que originou a formação da ilha, deu-se há cerca de 800 mil anos, no local hoje conhecido como Porto da Boca da Ribeira. É aqui, junto ao nível do mar, que tem início a Grande Rota Pedestre Faial Costa a Costa. Com um total de 36 quilómetros, cruza o território de leste a oeste, acompanhando a evolução geológica da ilha ao longo de cones vulcânicos, crateras, furnas e algares. Parte do percurso resultou da recuperação de antigos caminhos rurais – as chamadas canadas –, que serviam para ligar as freguesias mais isoladas à cidade da Horta. Um verdadeiro trabalho de «arqueologia dos trilhos, que dá a conhecer todo um enredo histórico e social, transmitindo ao visitante a extrema dificuldade da vida rural nesses tempos», explica o diretor Parque Natural do Faial, João Melo.
Começa praticamente a subir, pelo Atalho do Farol, onde foram escavados degraus para facilitar a progressão pela íngreme encosta que conduz ao Farol da Ribeirinha, construído em 1919 e destruído pelo sismo de 1998, cujo epicentro teve lugar no mar, a apenas 5 quilómetros. A vista é deslumbrante, com a vizinha ilha do Pico a dominar o horizonte, vislumbrando-se, mais além, São Jorge e Graciosa. A presença da montanha do Pico é uma constante ao longo de todo o percurso. Nalguns locais, do ângulo certo, dá até a ilusão de se tratar de uma só ilha. E num futuro mais ou menos longínquo talvez isso acabe mesmo por acontecer. Há quem defenda que Faial e Pico são na verdade o topo de uma imensa montanha subaquática, que continua a crescer desde as entranhas do oceano, tornando, um dia, estas duas ilhas numa só.
Um dos pontos altos da Grande Rota é a chegada à caldeira. Situada a pouco mais de mil metros, com dois quilómetros de diâmetro e cerca de 400 metros de profundidade, impressiona pela dimensão. Uma caprichosa formação geológica, no seu interior, originada por um vulcão mais recente e de menor dimensão, parece uma versão em miniatura da própria ilha do Faial. Formada há cerca de 500 mil anos, esta enorme cratera teve a última erupção há “apenas” 1200 anos e desde então tem permanecido quase intocada. «No interior da Caldeira estão representadas mais de 75 por cento das espécies endémicas do arquipélago», assinala João. Devido à necessidade de conservação deste precioso reduto da primitiva Laurissilva húmida, o troço da Descida à Caldeira é o único da ilha, a par do Vulcão dos Capelinhos, que necessita de marcação prévia e a presença de um guia credenciado pelo Parque Natural – podem ser realizadas até três descidas por dia, com um número máximo de 12 visitantes.

Foi no Vulcão dos Capelinhos que aconteceu a última erupção ocorrida no Faial, entre 1957 e 1958. (Fotografia de Adelino Meireles/GI)
Uma das empresas autorizada a fazê-lo é a Azores Experiences, que também organiza passeios pedestres, de bicicleta e em jipe pela ilha, bem como observação de cetáceos. Um dos responsáveis pela empresa é Filipe Ávila, um faialense de 38 anos, que não esconde o orgulho que sente por esta terra. «Estamos prestes a entrar num dos mais preciosos redutos da flora natural dos Açores», avisa Filipe, que nem sequer tem as descidas à Caldeira anunciadas no site de empresa. «Esta atividade é só para os verdadeiros amantes da natureza, não a quero massificar».
A aventura implica percorrer um íngreme trilho, invisível desde o miradouro, que serpenteia pela encosta ao longo de quase um quilómetro. Chegados à base da caldeira, os pequenos arbustos, vistos lá de cima, revelam-se, afinal, uma floresta de cedros, dando finalmente a real noção da escala desta imensa cratera. Em alternativa à descida, apenas aconselhável a quem esteja em boa forma física, podem-se percorrer os dois quilómetros de diâmetro da cratera, apreciando esta mesma paisagem desde cima.
Na descida para a levada, a paisagem muda novamente por completo, sendo agora dominada pelo verde da cerrada floresta Laurissilva, onde abundam espécies como o louro, o sanguinho, o cedro-do-mato ou a saborosa uva-da-serra, um fruto silvestre algures entre uma uva e um mirtilo. Estamos no Trilho dos 10 Vulcões, que percorre, como o nome indica, os principais e mais recentes vulcões existentes no alinhamento fissural do Capelo. O último troço, que liga o Capelo e os Capelinhos, tem apenas sete quilómetros, mas é um dos mais diversificados, em termos paisagísticos, e igualmente um dos mais exigentes em termos físicos, sempre num constante sobe e desce. Esforço compensado pela paisagem. A leste, fica o Cabeço do Fogo, local da primeira erupção histórica do Faial, em 1672. Um pequeno desvio leva até à Furna Ruim, o algar de uma antiga chaminé vulcânica, com mais de 50 metros de profundidade, totalmente coberta de vegetação e, um pouco mais à frente, uma placa indica o Algar do Caldeirão. No horizonte avista-se já o Vulcão dos Capelinhos, o lugar da última erupção ocorrida no Faial, entre 1957 e 1958, que deixou atrás de si um rasto de destruição e uma geografia para a ilha, que, em pouco mais de um ano, se viu aumentada em mais de dois quilómetros quadrados. Aqui todos os quilómetros contam.

PICO

DAS VINHAS À MONTANHA
Do cais da Madalena ao Lajido da Criação Velha são pouco mais de três quilómetros, numa caminhada sempre junto ao mar e com vista para o Faial. É um passeio agradável, pelas traseiras de algumas casas e armazéns, mas pouco mais que isso. Até que, de repente, para onde quer que se olhe, só se veem muros de pedras negras, empilhadas à mão, umas sobre as outras, ao longo de séculos. Os famosos currais. É aqui que são cultivadas as uvas das castas Verdelho, Arinto e Terrantez com as quais é feito o vinho do Pico. Uma cultura da vinha que é uma espécie de monumento ao engenho e capacidade de adaptação aos ambientes mais adversos (classificada como Património Mundial pela UNESCO) e que terá sido introduzida na ilha pelos primeiros povoadores, ainda no século XV. Mas só mais tarde, ao verem-se impossibilitados de cultivar cereais sobre o chão de pedra, os monges franciscanos e carmelitas improvisaram esta engenhosa solução. Como era necessário proteger as plantas da maresia salgada, ergueram muros de basalto que funcionavam também como estufa, acumulando calor durante o dia e libertando-o à noite – acentuando a doçura.
O topo do Moinho do Frade é um dos melhores locais para ter uma panorâmica sobre tudo este cenário, se bem que, por momentos o olhar se desvie no sentido oposto, em direção à montanha, o (nosso) destino final, a cerca de 20 quilómetros. Sempre a subir.
Apesar de não haver nenhum percurso oficial, são vários caminhos agrícolas e trilhos pelas pastagens que cumprem bem esse fim. Aliás, nem são necessários grandes azimutes quando o objetivo é atingir aquela imensa montanha, a maior de Portugal, com 2 351 metros, que é também a terceira mais alta a emergir do Atlântico.
Ao contrário do que seria de esperar, a subida revela-se suave, pois em vez de trepar monte a cima, os caminhos serpenteiam à volta do mesmo, tornando o passeio muito mais agradável, especialmente quando se atinge a zona de pastagens do planalto. Apesar da vista estar constantemente colocada na montanha, impõe-se uma paragem para olhar em sentido contrário e apreciar, lá do outro lado do canal, a ilha do Faial.

O meu tempo nem sempre permite subir ao Pico, que costuma estar coberto de nuvens. (Fotografia de Adelino Meireles/GI)
Desde aqui já falta pouco para chegar à Casa da Montanha, local de paragem obrigatório para quem quiser subir ao Pico e onde é feito o registo de controlo das subidas – são apenas permitidos 320 visitantes por dia e 160 em simultâneo.
É lá que nos espera Cecília Jorge, 46 anos, a guia de montanha (e hoje amiga) com quem, há quatro anos, subi pela primeira vez ao Pico, durante a noite, para assistir ao nascer do sol. Foi «a paixão pela montanha», incentivada desde pequena pelo pai, que a levou a tornar-se guia na empresa Caminhando, cuja principal atividade são precisamente as subidas ao Pico. Uma mudança radical de vida, tomada após o divórcio.
Fechou a loja de vestuário que sempre teve e zarpou para a montanha. «Foi a melhor decisão que tomei. Ter a oportunidade de partilhar este local é um privilégio», explica. Desta vez, porém, o tempo – estamos nos Açores, é bom não esquecer – não permite subir ao Piquinho, o ponto mais alto, onde algumas pedras quentes e um ou outro jato de fumo, lembram as suas origens vulcânicas, impondo ao visitante o devido respeito.
Apesar de não ser uma subida muito técnica, é considerada de grau de dificuldade ‘médio a elevado’, pelo que é necessário tomar algumas cautelas básicas e «quando o tempo está mau, pode tornar-se muito complicado». Em contrapartida, aceitamos o convite de Cecília para ir até à zona do Cachorro e do Lagido de Santa Luzia, outra das zonas Património da Humanidade, e onde por esta altura do ano está a ser feita a não menos famosa aguardente do Pico, de bagaço e de figo. À chegada à pequena aldeia, Manuel Caburra, o responsável pela destilaria comunitária, recebe-nos de braços abertos e com uma garrafa na mão, acabada de encher no alambique. A forma perfeita, orgânica, de terminar uma caminhada.

SÃO JORGE

À DESCOBERTA DAS FAJÃS
Reza a lenda que foi Willem van der Hagen quem deu início à povoação de São Jorge, no local onde fica hoje a Vila do Topo. É daí que partimos, com destino ao complexo vulcânico mais antigo, na vizinha freguesia de São Tomé, para cruzar a ilha de sul para norte, percorrendo algumas das suas mais emblemáticas fajãs.
A íngreme descida funciona como um convite para acelerar o passo e à medida que descemos falésia abaixo, junto a socalcos cultivados com inhame, o casario em pedra negra da Fajã de São João apresenta-se como um verdadeiro oásis à beira mar – a pequena localidade é conhecida não só pela fama dos seus vinhos, licores e aguardentes, mas também pelas frutas, figos, nozes, laranjas, maçãs, castanhas e ananases.
«A melhor maneira de conhecer as fajãs, é percorrendo a pé os diversos trilhos que as ligam, como faziam os antigos», diz-nos, à chegada à Fajã dos Vimes, Dina Nunes, uma jorgense de 32 anos. Nasceu e cresceu aqui, saiu para estudar desporto da natureza e turismo ativo, e regressou a casa para trabalhar na sua área. Com o companheiro, Jorge, também ele com formação em turismo, abriu a Discover Experience, uma empresa de Turismo de Natureza. O amor de Dina pela ilha é hereditário. O pai, Manuel Nunes, foi o responsável por colocar a pequena fajã nas bocas do mundo, quando aqui começou a cultivar «a única plantação de café da Europa», tudo feito «à mão e pelas pessoas da família». Produz cerca de uma tonelada ao ano, da variedade arábica, que pode ser provado no estabelecimento da família. E pode-se até levar café para casa, dentro dos pequenos sacos confecionados pela mãe Alzira, nos teares centenários recuperados e reconstruídos pelo marido. É também aí que tece as tradicionais colchas de ‘ponto alto’, outra arte da Fajã dos Vimes, da qual é atualmente a última artesã.

Uma das fajãs da ilha de São Jorge. A melhor forma de as percorrer é através dos trilhos que as ligam umas às outras. (Fotografia de Adelino Meireles/GI)
Segue-se uma subida à crista desta ilha em forma de dragão, naquele que é o troço mais duro e apenas aconselhável a quem tenha alguma preparação física. Uma espécie de parede com alguns degraus escavados na rocha, sob a densa vegetação. Mas, já se sabe, para se chegar ao céu são necessários alguns sacrifícios. E é verdadeiramente uma imagem do paraíso, a que se observa, mal se começa a descer a Serra do Topo, em direção a uma das mais bonitas fajãs de São Jorge, a fajã de Santo Cristo.
Sem acesso a automóveis, os únicos meios de transporte são o barco e a moto-4, que nos últimos anos substituiu os tradicionais burros. Ou, claro, a pé, através daquele que é o mais famoso percurso pedestre local. Tem início a cerca de 700 metros de altitude, descendo-se através de íngremes pastagens, com passagem por diversas cascatas de água cristalina, que convidam ao mergulho. Sim, porque nem só a andar se pode fazer este caminho, como tão bem sabe Luís Paulo Bettencourt, 44 anos, um dos primeiros a apostar no turismo de aventura em São Jorge, com a criação, no ano 2000, da empresa Aventour. No início dos anos 90, foi também um dos pioneiros da canyoning nos Açores, quando, apenas munido de um arnês construído pelo próprio e de uma corda roubada ao pai, começou a explorar as cascatas da ilha. «Temos condições únicas para o canyoning», diz, enquanto se prepara para descer a Ribeira do Caldeirão, uma sucessão de pequenas e médias cascatas, nas proximidades da Fajã da Caldeira de Santo Cristo, «perfeitas para quem se está a iniciar» nesta modalidade. A caminhada continua depois, encosta abaixo, com o vagar que se impõe para apreciar a paisagem. Ao longe, avista-se finalmente a fajã, com o seu casario disperso ao longo da lagoa.
Quem hoje chega a este lugar remoto, dificilmente imaginará que, em tempos, já foi uma das mais importantes de São Jorge, com uma população de quase 200 habitantes. O êxodo teve lugar depois de grande sismo de 1980, que obrigou a maioria da população a fixar residência noutros pontos da ilha. Hoje, são apenas 10 as pessoas que aqui vivem em permanência. Uma delas é David Moreira, 36 anos. Natural do Porto, era ainda bebé quando veio com os pais para São Jorge e depois de alguns anos a estudar e a trabalhar em Lisboa, regressou há cerca uma década, para recuperar a velha casa onde em criança passava férias, transformando-a num surf-camp equipado com guesthouse, também ela «cada vez mais procurada por caminhantes».
Esta fajã distingue-se das restantes pela existência de uma lagoa de água salobra e sujeita às marés, onde se reproduzem as famosas ameijoas da lagoa de Santo Cristo. É ainda hoje um mistério como terão sido introduzidas na lagoa. Sabe-se que já lá estão há mais de 100 anos e que aqui encontraram um habitat perfeito, como se constata pelo seu generoso tamanho. Entretanto tornaram-se num dos pratos mais famosos da gastronomia de São Jorge, que David faz questão de dar a provar a quem o visita. O suplemento perfeito para fazer os quilómetros que faltam, até à Fajã dos Cubres.

in evasoes.pt

Sem comentários

Enviar um comentário