Se gostas de lugares periféricos e de vinhas quase impossíveis, com história e sofrimento, este postal é para ti. Escrevo-te da lindíssima aldeia de São Lourenço, na ilha de Santa Maria.
Se gostas de lugares periféricos e de vinhas quase impossíveis, com história e sofrimento, este postal é para ti. Escrevo-te da lindíssima aldeia de São Lourenço, na ilha de Santa Maria, embalado pelo marulhar das ondas e a serenidade do mar pousado sobre a linha do horizonte. Cheguei há quatro dias e ainda não deixei de me interrogar sobre o que terá levado tanta gente a erguer “quartéis” de pedra (socalcos) pela encosta acima, quase a prumo, para produzir um pouco de vinho. Tens de ver para acreditar.
As casinhas fazem lembrar o Alentejo, brancas e muitas delas com portadas e rebordos pintados a azul. Umas quantas têm chaminés do tipo algarvio. Disseram-me que os primeiros colonos vieram do Sul do país. Séculos depois, o seu legado ainda se mantém. A paisagem da metade ocidental da ilha, mais árida e plana, também nos remete para o Alentejo ou, ainda mais, para Porto Santo. Na verdade, Santa Maria, sendo a ilha mais antiga do arquipélago, é a que menos se enquadra na imagem típica dos Açores. Tem mais sol do que as outras e é mais seca. O ar de deserto só desaparece a leste dos picos vulcânicos que dividem a ilha e abrem passo a um cenário mais verde e húmido, povoado de pastos férteis, ribeiras apertadas e arribas verdejantes caídas sobre o mar. São Lourenço fica no fundo de uma delas, aninhada em concha ao longo da metade de uma antiga cratera e mesmo aos pés de uma belíssima enseada. Quando o sol abre, as águas do mar ganham uma tonalidade verde-esmeralda. O paraíso não deve ser muito mais bonito.
Hoje passou por aqui o peixeiro, na sua carrinha, com cracas acabadinhas de apanhar e ventresca de atum. Melhor do que caviar e mais barato. Domingo de manhã cruzei-me com um homem que pescava com uma cana de bambu pendurado numa rocha só rodeado de água. Uma onda mais forte e lá ia ele. O seu trabalho é pescar e vender logo ali o peixe já amanhado: cinco euros o quilo, a olho. Convenceu-me, facilmente, a levar-lhe a pescaria toda até àquela hora: uns quatro quilos de veja (um peixinho colorido que nem é muito bom, nem é muito mau). Vinte euros. Em que outro lugar encontras alguém a pescar de cana para o teu almoço?
Em São Lourenço, enquanto uns poucos vivem do mar, outros, ainda menos, continuam a subir a encosta para tratar das suas vinhas. Hoje, vivem de forma permanente na aldeia menos de 20 pessoas. A maioria dos socalcos já está coberta de fetos e de outros arbustos. Falta gente para tratar este imenso anfiteatro de quartéis, que parecem ter sido feitos para serem sulcados por titãs saídos do mar. Os socalcos desdobram-se encosta acima até quase ao ponto onde já nem a gravidade nos agarra ao chão. Estou a olhar para aos quartéis da Farrapelha, na parte norte da baía, e há uma fiada de socalco que só termina mesmo no penhasco. É impressionante! Tens de ver.
Cansa só de pensar em subir o escadario estreito que separa os socalcos da parede que delimita cada uma das vinhas. Não há estradas, nem caminhos para um burro ou um cavalo. É feito tudo a pé. As uvas são transportadas às costas para as pequenas adegas de cada um. Em Santa Maria, a viticultura é ainda mais difícil e improvável do que nos Biscoitos da ilha Terceira ou nos lajidos do Pico.
Depois de ver com os meus olhos os socalcos de São Lourenço, e também os da Maia, igualmente imponentes, vou obrigar-me a morder a língua antes de me queixar do difícil que é ser viticultor no Douro. Vindimar sob uma temperatura de 44 graus, como já me aconteceu, é mesmo duro. No Inverno, quando se fazem os primeiros trabalhos da vinha, o frio chega ser tanto que os trabalhadores quase congelam. E nas vinhas velhas e inclinadas também se pena muito. Mas, no final, conseguimos produzir vinhos bons. E quem tiver vinhas autorizadas para a produção de vinho do Porto pode viver da vinha. Em Santa Maria, a maioria dos viticultores sobe e desce aquele calvário só para produzir um vinhozinho aromático, feito de castas americanas (o popular morangueiro, por aqui baptizado vinho “de cheiro”), para beber todos os dias e, em especial, com as sopas do Espírito Santo.
Já se produziu em Santa Maria bom vinho de castas europeias, como a Verdelho, por exemplo. Com a filoxera, toda a gente começou a plantar Isabella e outras que tais, mais resistentes e produtivas — e a necessidade criou o hábito. Hoje, só se produz vinho de cheiro nos cerca de 30 hectares existentes em toda a ilha. Como não há apoios para estes vinhos (só há para castas europeias) e falta mão-de-obra, a vinha tem vindo a ser abandonada. Pouca da que resiste pertence, sobretudo, a emigrantes que delegam o trabalho em procuradores locais. Aqui ninguém vive do vinho. Mesmo que se quisesse, era difícil. Aqui, faz-se vinho para ir vivendo e honrando o legado. Se não se fizer nada, dentro de poucos anos esta extraordinária paisagem vinhateira vai ser completamente comida pela vegetação. Há séculos de história condensados naqueles quartéis de pedra seca. Num mundo cada vez mais igual, são lugares como estes que nos distinguem do resto do mundo.
Tens de vir cá enquanto é tempo. Por esta altura raramente chove e a água do mar é mais limpa e mais quente do que a do Algarve. Há pouca gente na praia e todos, ilhéus e turistas, se cumprimentam quando se cruzam. Vem sem pressa e com espírito de aldeia. Se te cansares, tens Internet. Isto não é o fim do mundo. Ah, e traz vinho! Na Vila do Porto, a sede do concelho, podes encontrar alguns bons brancos do continente e um ou outro dos Açores. Estão caros, mas alguns valem a pena. Também não falta queijo do arquipélago. Faz como eu, que sigo sempre à risca o lema do meu sogro: “Na terra dos lobos, uiva com eles”. Nunca me dei mal, acredita.
Fonte: Publico
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