Carlos Ávila de Borba nasceu na ilha Terceira em 1963. Emigrou 26 anos depois e levou na bagagem a criatividade subjacente a mais de duas décadas rodeado de mar. Numa vida dedicada ao desporto, nos vários pontos do mundo por onde passou, de muito lhe serviu o engenho aguçado pela condição arquipelágica. Treinador de desportistas de alto rendimento (nas mais variadas modalidades), fez escala nos Estados Unidos da América, Espanha, Finlândia, Itália, Japão e hoje vive na Alemanha. Poliglota, fala seis idiomas, mas é a língua dos campeões a que melhor domina. Por essa razão, vimo-lo apontar o caminho das medalhas de ouro e do pódio olímpico a vários atletas. Apesar das visitas regulares, as saudades dos Açores são sempre muitas...O orgulho na política desportiva regional é que não se apresenta na mesma proporção.
Saiu da Terceira, ilha onde nasceu em 1963, há cerca de 30 anos. Saudade?
Claro que há muita saudade dos Açores e, de uma forma muito especial, da ilha Terceira. Mantive, no entanto, a tradição de visitar anualmente a Região, desde que saí do país, em 1989, e fui para os Estados Unidos da América...Os Açores estão sempre no coração!
Foram 30 anos preenchidos, no entanto...Tem estado a acompanhar alguns dos maiores e mais promissores talentos desportivos do mundo. Atletismo, ténis, patinagem artística no gelo, ski, tiro ao arco, ciclismo, triatlo, biatlo, natação sincronizada, são algumas das modalidades em que exerceu a função de treinador. Como ser tão multifacetado?
Isto tem um pouco a ver também com o 'ser-se açoriano'. Lembro-me que, com os amigos de infância, brincávamos um pouco de tudo e experimentávamos todas as modalidades... Fiz ginástica, atletismo, vela, joguei futebol, basquetebol, badminton, passei pelo ténis...Estive em tudo. Tínhamos que nos socorrer da criatividade; que inventar coisas. Depois, juntei o melhor desse 'mundo' com a exigência e qualidade com que me confrontei no estrangeiro. Eu não me tornei especialista técnico de todas as modalidades. O meu conceito de treino, baseado na variabilidade, criatividade, inovação dos métodos aplicados na mentalização dos atletas e sentido crítico é original e moderno, mas para tal foi determinante a experiência acumulada ao lado de excelentes professores e treinadores um pouco por todo o mundo. Esta aprendizagem permitiu-me abranger várias modalidades desportivas e criou também a possibilidade de cooperar com as mais variadas equipas técnicas.
Mas também já trabalhou diretamente com a componente técnica dos atletas, correto?
Sim, enquanto tive o meu centro de treino de atletismo em Immenstadt (sul da Baviera) era responsável por todo o conceito e planeamento, mas ultimamente, quer no ténis, ou na patinagem artística no gelo (com exceção da Finlandesa Kiira Korpi) tenho estado em contexto de colaboração com os comandos técnicos...
Eu tive um atleta no meu grupo de treino, quando cheguei à Alemanha, em 1992, vindo dos EUA, que acabou diretor do centro olímpico de Oberstdorf. Ele perguntou-me se quereria treinar os patinadores da federação alemã ao nível da preparação física, acompanhá-los em estágio, e eu aceitei. A partir daí, fui seduzido pela dificuldade e beleza da modalidade e tornei-me um especialista. Nesse mesmo centro olímpico treinei a Italiana Carolina Kostner (campeã europeia, mundial, e medalha de bronze nos jogos olímpicos de Sochi 2014) e os patinadores de dança no gelo Kati Winkler e René Lohse(par mundialmente medalhado)...
...É por essa altura que estabelece contacto com o patinador japonês Daisuke Takahashi?
Sim. Takahashi, em função dos resultados obtidos com a Carolina, chegou até mim através da treinadora russa Tatiana Tarasova. Com base nos excelentes resultados obtidos pelo Daisuke nos anos 2005, 2006, 2007 surgiu então o convite para treinar e lecionar metodologia do treino desportivo na Universidade de Chukyo no Japão, e por consequência, na Finlândia e Estados Unidos.
Treinou o campeão olímpico asiático Denis Ten do Cazaquistão na patinagem artística e também atletas medalhadas como Kiira Korpi e Mao Asada. Mais recentemente começou a treinar os guarda-redes juniores Luís Noack, do TSV Moosach, e Lukas Schneller, do Bayern de Munique. Como chegou ao futebol?
Enquanto treinador cheguei a fazer algumas preleções em Portugal – até mesmo com o professor Arnaldo Cunha, da Federação Portuguesa de Futebol e com o professor Luís Carlos Couto, natural da ilha Terceira – e sempre tive interesse na forma como o futebol se joga e se desenvolve. Quando estava no Japão, para além de dar aulas de Metodologia de Treino Desportivo, era normal atletas e treinadores de várias modalidades cruzarem ideias comigo, alguns deles do mundo do futebol. Entretanto, quando regressei a Munique trabalhei na academia de futebol do Karl-Heinz-Ridler e tive contacto com vários jovens jogadores - um deles, Schneller, por coincidência, meu vizinho. Ainda não era jogador do Bayern de Munique, mas a família já conhecia o meu trabalho e quando tinha doze anos comecei a treiná-lo. Com 14 anos, ele foi convidado a fazer parte do Bayern e esse trabalho continuou. Hoje, ele tem 16, é guarda-redes dos juniores e tem contrato. Eu não trabalho no clube, mas sim com o jogador. É como que um trabalho de preparação para os treinos. O nível é tão exigente que requer alguém que se dedique a potenciar o lado mental, físico e até técnico, a priori do treino...
...Não se sabe o que o futuro reservará, mas como se convive com a responsabilidade de se treinar um potencial guardião da baliza de uma das maiores equipas e seleções do mundo. Na verdade, pode ter um papel decisivo sobre se ele poderá ou não vir a ter sucesso...
...Por essa razão, é tão mais importante acompanhar de perto o jogador. Eu não estou em todos os treinos deles no clube – porque viajo muito -, mas sempre que me é possível estou lá. Observo o comportamento dos outros guarda-redes, a atuação dele, anoto as dificuldades e depois dialogamos sobre essas questões. Treinamos posteriormente e elaboro um plano de exercícios para ele melhorar e poder ter sucesso no treino seguinte. É o que me cabe: garantir que treina bem e é selecionado...Isso tem acontecido, felizmente. A nossa exigência, na verdade, é quase diária, porque, em clubes dessa dimensão, os treinos são disputados como se de uma competição se tratasse.
Entretanto, mantém-se como conselheiro internacional, justamente em países onde se desenvolveu academicamente (como nos EUA e Alemanha), ou onde exerceu a função de treinador e professor (como Finlândia e Japão). Nesse punhado de países por onde passou, em qual sentiu o maior choque cultural?
No Japão, claramente. A cultura japonesa é muito exigente e o sistema é duro, sobretudo, para os jovens que ainda não acabaram o secundário. Mas isso, no plano desportivo, não é necessariamente mau. São jovens muito dedicados, que são capazes de se levantarem às 4 da manhã para treinar das 5h30 às 7h30, irem para a escola e voltarem a treinar das 17h00 às 20h00, se for necessário...
...Prefere treinar os orientais ou os ocidentais?
Bem, quando se encontra um atleta com talento e pré-disposição para se sacrificar nos EUA, Portugal, Canada, Finlândia ou Alemanha, podemos constatar que ele é mais criativo e espontâneo. No Japão, há a parte do trabalho árduo, mas é necessário procurar aquele talento que seja mais universal e natural...Lembro-me da resistência na escolha das músicas para a patinagem...Foi difícil fazer com que os japoneses aceitassem sair das músicas tradicionais do país e introduzissem melodias mais internacionais [risos]. Portanto, a escolha perfeita seria um misto de ambas as realidades: ocidental e oriental.
A comunicação nunca foi um entrave? Quantas línguas domina?
Eu, hoje em dia, domino seis. Já foram sete, mas o japonês está um pouco esquecido. Ainda assim, o facto de estar sempre a lidar com atletas que também viajam muito e que trabalham a um nível internacional, o inglês acaba por ser o idioma mais utilizado.
Mantém uma relação com os Açores, como nos disse, mas para quando um regresso mais efetivo e porque não abraçar o desafio de criar um campeão açoriano de raiz?
[risos] Isto é difícil! Apesar de nos primeiros anos me ter preocupado em informar e criar linhas de cooperação, chegou a uma altura em que tive de constatar o seguinte: "em casa de ferreiro espeto de pau" e "santos de casa... só fazem milagres na casa dos outros". Claro que penso um dia regressar, respirar ar puro, usufruir da beleza das ilhas, mas quanto a concretizar mais projetos, não sei...Há muita coisa que passa pela política. Já cheguei a ser convidado para desenvolver projetos por diretores regionais e cheguei ao ponto de elaborar um e a entregá-lo...Nunca houve foi uma resposta [risos].
De que projeto se tratava?
Estava sustentado num projeto lançado a nível europeu que se chama 'O Novo Atleta Como Projeto de Estudo'. Tratava-se de um plano articulado entre as escolas, os clubes e as federações e o objetivo é garantir o rendimento do jovem em todas as valências. Eu representei a Finlândia nesse projeto num congresso europeu em Oulu, e cheguei a ser visitado por professores dos Açores na cidade de Kuopio (Finlândia) onde fui mentor desse mesmo projeto na academia do desporto. Uns anos mais tarde um diretor regional da cultura e desporto convidou-me a ter uma reunião na Região e a apresentar-lhe um projeto...Foi o que fiz, mas nunca obtive qualquer 'feedback' [risos]...
Acha que isso é reflexo de uma má política desportiva na Região?
Claro, apesar de esse senhor já não manter as mesmas responsabilidades. Acho que temos que reconhecer a insularidade. Não nos podemos dar ao luxo de procurarmos o sucesso desportivo, baseado na compra exagerada de atletas de fora. Bloqueamos completamente o nosso desenvolvimento desportivo. Nós, na nossa condição de insulares, temos de dar prioridade às modalidades individuais, (não descurando as coletivas), onde seria mais fácil a projeção. Não é fácil, em função de termos uma população reduzida, apresentarmos sucesso em modalidades coletivas, muito menos se formos à procura de 'recheá-las' com valores exteriores à Região. Isso só significa mais despesa e clubes a fecharem portas. Temos também de procurar pessoas qualificadas e com resultados confirmados para trabalhar a formação desportiva das crianças e jovens...
...Lamenta que não seja isso que esteja a acontecer?
Claro. Nós temos muitos jardins de infância, escolas primárias, secundárias e milhares e milhares de possíveis talentos para o desporto. Mas temos que saber criar uma estrutura desportiva para os apoiar e ensinar bem. Só assim, e em cooperação ao nível do ensino com o continente, e com o estrangeiro, poderemos então desenvolver o desporto de ilha, o desporto regional, e aspirar levar o nome dos Açores além fronteiras, com um maior numero de atletas formados na região.
Se fosse convidado a ser um agente de mudança do atual paradigma desportivo regional, aceitaria?
Eu acho que correria o risco de ser odiado ou amado. Porque perceber a diferença e a reestruturação que é necessária aplicar iria provavelmente criar muitas inimizades. Para reestruturar haveria que 'respirar fundo' e promover primordialmente a qualidade na formação. Começar pelas escolas, valorizando o talento de cada indivíduo, apostar no ensino de qualidade. Mas tudo isso não é compatível com a pressa em se alcançar resultados rápidos...Depois cai-se na asneira de se ir buscar atletas de segunda linha (alguns já velhos) para se tentar chegar à primeira.
Apesar da vasta carreira desportiva, o Carlos Ávila de Borba surpreende-nos agora como romancista. Do que se trata este seu primeiro livro, 'Felicidade à Espera'. Tem o desporto como inspiração?
Vocês, jornalistas, mexericam em tudo. [risos]... É verdade que comecei a escrever. Mas por agora só posso adiantar que o livro está a editar em Lisboa, e depois logo se vê. [mais risos]...
Fonte: Açoriano Oriental
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