Os brancos dos Açores não param de melhorar e de dos nos surpreender. A sua acidez, a sua mineralidade, o rasto salino que deixam no palato dão-lhe uma originalidade única. Numa prova de 21 vinhos, o painel de provas da FUGAS rendeu-se à sua classe.
No meio do negrume das rochas vulcânicas da ilha do Pico, as folhas verdes das videiras parecem um milagre. Durante séculos, é fácil compreender que os habitantes da ilha lutassem contra essa natureza agreste para produzirem os vinhos que dificilmente conseguiriam obter por causa da distância e do isolamento. Hoje, a cultura da vinha está a expandir-se rapidamente não por causa dessa necessidade, mas porque os vinhos do Pico e, num plano mais abrangente, dos Açores, estão a tornar-se casos muito sérios junto dos enófilos que procuram autenticidade, originalidade e um carácter indiscutível.
Foi com base neste reconhecimento que uma parte do painel de provas que habitualmente se reúne para as edições especiais sobre o vinho na FUGAS (neste caso, Álvaro Van Zeller, Joe Álvares Ribeiro, Beatriz Machado, Lígia Santos e Pedro Garcias) se mobilizou para fazer uma prova cega dos brancos dos Açores. Há uns anos, juntaríamos meia dúzia de vinhos, no máximo. Desta vez, provámos mais de duas dezenas, o que diz bem das mudanças que estão a ocorrer naquele arquipélago.
Falar em revolução pode parecer exagerado, mas, pelo menos no Pico, é isso que está a acontecer. A classificação, em 2004, da paisagem de vinha do Pico como Património Mundial e, mais recentemente, os apoios regionais à plantação de novas vinhas criaram uma nova dinâmica na ilha, que já começa a ser visível na paisagem. Tanto na zona das Bandeiras, na costa norte, como em São Mateus, não param de crescer as manchas de curraletas resgatadas às faias e aos incensos. As curraletas são a face mais visível da grade epopeia picarota. São quilómetros e quilómetros de pedra solta arrumada em pequenos quadrados ou em círculos para proteger as videiras do rocio do mar (cada curraleta pode levar entre seis a dez videiras, que crescem sem qualquer aramação junto ao solo).
Em São Mateus, a Azores Wine Company, de António Maçanita, Paulo Machado e Filipe Rocha, está a plantar a maior vinha contínua do Pico. São cerca de 40 hectares de curraletas. Esta empresa tem liderado a recuperação das castas Verdelho, Arinto dos Açores e Terrantez do Pico e produz alguns dos melhores vinhos brancos do Arquipélago. Os seus Arinto sur lies, em especial o 2015, são antológicos. A Azores Wine Company está também a plantar vinhas na zona das Bandeiras e vai participar ainda num projecto de enoturismo em São Roque. Ao todo, irá ficar com uma área de cerca de 100 hectares de vinha.
Se pensarmos noutras regiões do país, até nem parece uma área muito grande. Mas, para a realidade açoriana, é enorme. Plantar uma vinha no Pico ou na zona dos Biscoitos, na Terceira, por exemplo, é um trabalho de gigantes. É tudo demasiado difícil e dispendioso. Primeiro é necessário expurgar os terrenos de árvores e arbustos; depois é preciso erguer muros de pedra solta; e, finalmente, é necessário encontrar entre a pedra uma nesga de terra onde mergulhar as raizes das videiras.
Quando a vinha fica pronta, começam outros desafios: a chuva constante, o rocio do mar, as doenças da vinha. Mesmo assim, no século XIX, a cultura da vinha chegou a ser principal actividade económica do Pico. Alguns dos vinhos do Pico faziam parte das listas das garrafeiras de casas imperiais como a dos Romanov, na Rússia.
Hoje, deve ser o turismo, mas o vinho começa a assumir de novo uma grande importância, ao ponto de na vindima deste ano, pouco produtiva, as uvas terem sido vendidas a quatro euros o quilo. Em nenhuma outra região do país, nem mesmo no Douro, nas uvas para vinho do Porto, se pagam valores semelhantes ou sequer aproximados.
Isto diz bem do dinamismo que está instalado no Pico (onde a adega cooperativa local continua a ser o maior operador) e do interesse que os vinhos dos Açores estão a despertar junto de produtores e enólogos do continente. António Maçanita é hoje o rosto da mudança e aquele que melhor tem sabido promover a singularidade e a autenticidade dos brancos açorianos, sobretudo os do Pico, embora a Azores Wine Company também vinifique uvas de São Miguel e da Graciosa.
Mas um dos primeiros a perceber o potencial dos brancos açorianos (os tintos é para esquecer, embora haja alguns produtores que teimosamente, e sem bons resultados, continuam a insistir em castas tintas estrangeiras) foi Paulo Laureano. Alguns dos melhores vinhos do Pico, os Curral Atlantis, têm a sua assinatura. Por sua vez, Anselmo Mendes e Diogo Lopes (Adegamãe) deixaram-se seduzir pelos vinhos da Terceira e, depois de uma primeira investida, em 2011, interrompida em 2013, recomeçaram a produzir vinho naquela ilha.
Os dois enólogos fizeram um acordo com os serviços regionais de agricultura e com a direcção da Adega Cooperativa dos Biscoitos, no concelho da Praia da Vitória, e passaram a assumir a produção e a comercialização dos vinhos dos cerca de 60 sócios da cooperativa. Recentemente lançaram dois magníficos vinhos da colheita de 2015, o Magama e o Muros de Magma, ambos da casta Verdelho.
Em anos normais, a produção da Adega dos Biscoitos não ultrapassa os 10 mil litros e só uma pequena parte é que pode levar o selo DOP (Denominação de Origem Protegida). Ao contrário do que tem acontecido no Pico, na Terceira, a plantação de novas vinhas tem sido residual, apesar dos apoios financeiros generosos que estão à disposição dos produtores. Mas a Área de Paisagem Protegida das Vinhas dos Biscoitos (integrada no Parque Natural da Terceira), criada pelo governo regional para travar o avanço da construção imobiliária, também é pequena - estende-se por apenas 165 hectares de biscoito, nome que se dá à terra queimada nascida dos vulcões. E na maior parte só se produz o chamado “vinho de cheiro”, feito a partir de castas tintas americanas (o equivalente ao “morangueiro” do continente), e que continua a ser muito consumido nas ilhas, em especial para acompanhar as tradicionais sopas do Espírito Santo.
Ao todo, no arquipélago, ainda há cerca de 700 hectares a produzir “vinho de cheiro”. Em São Miguel há cerca de 130 hectares de vinha com castas americanas, mais ao menos o mesmo que na Terceira. A maior parte situa-se no Pico (cerca de 300 hectares), a ilha onde também se tem plantado mais vinhas novas e onde mais sopram os ventos que estão a mudar a face dos vinhos dos Açores. Não só dos brancos tranquilos, mas também do famoso Verdelho do Pico, um vinho não fortificado feito de uvas brancas muito maduras, maioritariamente da casta Verdelho, que pode atingir 17%, 18% ou, em casos excepcionais, até 20% de álcool.
Na prova que decorreu no consagrado Cella Bar, na Madalena, o painel da Fugas experimentou 21 vinhos, cinco dos quais generosos do Pico. Um acabou desqualificado. Dos tranquilos, todos eram das colheitas de 2015 e 2016. Os três primeiros vinhos obtiveram classificações muito próximas. Mas a diferença entre o mais e menos classificado chegou aos 7.4 pontos (numa escala de zero a 100).
Os generosos variaram entre as vindimas de 2003 e 2006. Todos obtiveram mais de 90 pontos. O mais bem classificado (com 95.6 pontos) foi o Lajido – Doce de 2004 da Cooperativa Vinícola da Ilha do Pico; o segundo (95 pontos) foi o Buraca, de 2009, da Adega a Buraca; em terceiro, com 93.2 pontos, o Czar, de 2009, da Fortunato Garcia; em quarto, com 92.8 pontos, o Néctar dos Currais, de 2006, da Curral Atlantis; e em quinto, com 91.6 pontos, o Lajido Seco, de 2003, da Cooperativa da Ilha do Pico.
in publico.pt
Sem comentários
Enviar um comentário