Santa Maria A ilha portuguesa que é um tesouro por descobrir
Santa Maria é de uma beleza discreta, com particular encanto na forma como se revela nos detalhes, quase como se fosse necessário ganhar-lhe a confiança, para poder apreciá-la em todo o seu esplendor. E há tanto para ver, fazer e sentir na ilha açoriana: da riqueza geológica às praias de areia fina, passando, claro, pela simpatia das gentes, que de imediato fazem quem chega sentir-se em casa. E há um grande trilho de 78 quilómetros para descobri-la palmo a palmo.
É uma total improbabilidade geográfica, a história de Rita e de Ioannis. Ele um engenheiro ambiental francês, de 39 anos, habituado a cruzar oceanos no seu veleiro, ela uma dentista algarvia, de 44, a trabalhar na Suécia e também com o «bichinho» da vela. Conheceram-se nos Açores, em São Miguel, e pouco tempo depois já estavam os dois a atravessar o Atlântico num barco com pouco mais de 7 metros. «Se sobrevivemos a isso, sobrevivemos a tudo», diz Rita com humor. Em 2012, quando regressaram das Caraíbas, também de barco, fecharam a rota novamente nos Açores, onde tudo tinha começado. «Decidimos procurar um lugar para sermos felizes e, como nos conhecemos nos Açores, Santa Maria pareceu-nos o lugar perfeito para isso.»
Rita, tal como Ioannis, tem agora raízes muito mais profundas na ilha, depois de aqui terem nascido os filhos, uma rapariga e um rapaz. Mas também por causa da ILHA A PÉ, uma empresa de «ecoalojamento» composta por quatro palheiros, recuperados segundo os métodos tradicionais e com materiais ecológicos e que, desde o início do ano, servem de alojamento a quem percorre a grande rota pedestre da ilha. Cada um destes albergues tem capacidade para seis pessoas e, apesar da aparente simplicidade, são muito acolhedores. Além da cama confortável e do duche quente (a água é aquecida com recurso a energia solar ou a lenha), há ainda pequenas mordomias, como eletricidade a 12 volts (vinda de painéis fotovoltaicos) com ficha USB para recarregar telefones e câmaras, salamandra para aquecimento no inverno, churrasqueira e fogareiro no exterior. E apesar de não estarem equipados com cozinha, pode-se encomendar pequeno-almoço ou um lanche com produtos locais, bem como um jantar típico açoriano. «Por outro lado, ao longo do trilho existem diversos restaurantes e mercearias, que aconselhamos aos nossos hóspedes, para terem um contacto mais pessoal com os habitantes», explica Ioannis.
A Grande Rota
Esse foi também um dos principais objetivos da criação, há pouco mais de dois anos, do GRANDE TRILHO DE SANTA MARIA, que corre todo o pequeno território, através de um percurso circular de 78 quilómetros, com passagem pelas diversas zonas de interesse histórico, paisagístico, turístico e geomorfológico da ilha mais antiga dos Açores. Surgida há cerca de oito milhões de anos, Santa Maria faz parecer a montanha do Pico, com os seus 250 mil anos, um bebé grande, mas é também por essa razão que já não são visíveis por aqui os fenómenos vulcânicos presentes nas outras irmãs açorianas. O que não significa uma paisagem menos interessante, muito pelo contrário. «Apenas há que estar atento e partir à descoberta», diz Nélson Moura, um filho da terra de 28 anos formado em turismo que regressou à ilha para trabalhar como vigilante da natureza no Parque Natural. Foi ele, com um conjunto de amigos, que lançou o projeto da criação de uma grande rota pedestre, a segunda em todo o arquipélago, inaugurada há um par de anos.
A grande rota divide-se em quatro etapas, com cerca de 20 quilómetros cada, todas com início e fim numa das freguesias rurais da ilha, englobando todos os geossítios, todas as áreas do Parque Natural e todas as baías. «O objetivo é também trazer mais-valias socioeconómicas para a população e fazer deste produto muito mais do que uma mera caminhada», explica Nélson. Por essa razão, o trilho foi também pensado e desenhado de modo a poder permitir outras atividades ao ar livre, como geocaching, observação de aves, BTT ou trail running – é, aliás, cenário do Columbus Trail Run, uma prova que, desde há dois anos, tem atraído à ilha dezenas de participantes nacionais e estrangeiros.
A herança do sul
A primeira etapa tem início na Vila do Porto, junto ao Forte de São Brás, a maior de um conjunto de fortalezas erguidas durante a dinastia filipina, para proteger a ilha dos ataques dos corsários. Atravessada a Ribeira de São Francisco, onde foi instalado o primeiro porto dos Açores, o trilho prossegue em direção a leste, subindo ao geossítio da Pedreira do Campo, onde, apesar dos mais de 100 metros de altitude, podem ser apreciados fósseis marinhos e lavas subaquáticas. Um pouco mais além fica a praia Formosa, um dos principais centros balneares da ilha, onde todos os anos, no verão, se realiza o festival de música Maré de Agosto, um dos mais antigos do país.
Santa Maria foi a primeira ilha açoriana a ser descoberta pelos navegadores portugueses, em 1427. Foi também a primeira a ser povoada, por gentes vindas do Alentejo e Algarve, cuja herança se mantém nas pitorescas casas marienses: caiadas de branco e com rodapés coloridos que fazem lembrar a arquitetura das regiões do Sul do Continente. «Cada uma das freguesias pinta os rodapés com uma cor diferente. É uma forma de diferenciação da qual as pessoas têm muito orgulho e que se mantém até hoje, mesmo nas construções mais modernas», nota Nélson. As próprias chaminés, de «mãos postas», como quem reza, ou de «vapor», por lembrarem as dos velhos barcos a vapor, também lembram, respetivamente, as suas congéneres alentejanas e algarvias.
Maravilhas geológicas
A paragem seguinte é na freguesia do Santo Espírito, onde se impõe uma paragem na igreja da Purificação, famosa pela fachada barroca em pedra basáltica. Também obrigatória é a visita à COOPERATIVA DE ARTESANATO DO SANTO ESPÍRITO, para provar os tradicionais biscoitos de orelha ou comprar as tradicionais mantas marienses, feitas como antigamente, nos velhos teares, por mãos sábias como as de Maria Costa, uma das muitas habitantes que se recusa a deixar morrer esta tradição.
É também nesta freguesia que fica a Ribeira dos Maloás, uma impressionante formação geológica, em tudo idêntica à famosa Calçada de Gigantes na Irlanda. O contacto do mar com uma escoada lávica originou aqui uma queda de água com cerca de 20 metros, ao longo de colunas verticais de pedra vulcânica com quase um metro de diâmetro. «É um local também muito procurado para a prática de canyoning», afirma Miguel Marques, responsável pela SMATUR, uma das empresas de turismo de natureza sedeadas na ilha. Uma tendência que se explica com o facto de Santa Maria ser a ilha açoriana com maior número de ribeiras, sendo também em grande número as cascatas existentes. Poucas, no entanto, se comparam à espetacularidade da Cascata do Aveiro, imponente queda com cerca de 100 metros de altura, que desagua no mar, já a meio da segunda etapa do Grande Trilho. Para lá se chegar, há que percorrer estrada até à localidade ribeirinha da Maia. Antes, porém, aconselha-se um desvio até à Ponta do Castelo, para visitar o FAROL DE GONÇALO VELHO, um dos mais bonitos de todo o arquipélago.
Quase deserta durante quase todo o ano, a pequena localidade, conhecida pela piscina de mar, pelas vinhas em socalcos na falésia e pelo festival de música folk que acolhe anualmente no segundo fim de semana de julho, ganha nova vida durante o verão, com o regresso dos emigrantes. Ainda Moreira, nascida e criada dos Estados Unidos, é agora uma das seis habitantes a tempo inteiro. «Costumava vir nas férias e depois da morte do meu pai decidi mudar-me para cá, para continuar o negócio», conta Aida, também conhecida como Grota, alcunha herdada do progenitor, um antigo baleeiro emigrado em Boston que voltou à terra para abrir um café. O bar DELÍCIAS DA MAIA é hoje uma instituição local, não só por ser único num raio de quilómetros mas, acima de tudo, pela caldeirada e pela canja de peixe. E pela desconcertante simpatia de Aida, que não deixa nenhum novo cliente sair sem deixar a sua assinatura numa das paredes.
Paisagens inesperadas
A segunda etapa do Grande Trilho abrange uma das zonas de maior beleza paisagística da ilha, como se pode apreciar desde o Miradouro do Espigão, de onde se avista toda a baía de São Lourenço, com a sua praia de areia ladeada por abruptas encostas, onde são cultivadas as vinhas, em socalcos delimitados por um labirinto de currais de pedra. Um pouco adiante, a pequena localidade do Norte marca o início da seguinte etapa. Aqui ficam a Casa dos Oleiros e a Casa do Norte, duas das raras unidades de turismo rural existentes na ilha, o que não acontece por acaso: as etapas foram organizadas de modo a começarem e terminarem em locais com alojamento e restauração.
É tempo de avançar para o interior, em direção à freguesia de Santa Bárbara, também conhecida como «o presépio», devido às suas casas brancas, espalhadas pelas encostas. Seguindo para norte, sobe-se até ao Pico Alto, o ponto mais elevado da ilha, com quase 600 metros de altitude, para descer daí até ao Barreiro da Faneca. Foi neste local que ocorreram as últimas erupções na ilha, às quais se devem as argilas de cor avermelhada que lhe valeram a denominação popular de «deserto vermelho».
De novo junto ao mar, chega-se entretanto aos Anjos, o primeiro local de desembarque de Colombo no regresso da sua primeira viagem ao continente americano. Um momento recordado por uma estátua de bronze do navegador, colocada em frente à Ermida de Nossa Senhora dos Anjos, onde, segundo a lenda, terá mandado rezar uma missa, mal colocou pé em terra firme.
A parte final do Grande Trilho prolonga-se a partir daqui entre a orla costeira e a vedação do aeroporto, outrora um dos mais estratégicos do mundo por ter servido de escala entre os continentes americano e europeu. Antes, durante a Segunda Guerra Mundial, serviu de base a militares da força aérea americana, a quem inicialmente se deve a tradição cosmopolita da ilha, em especial da capital, Vila do Porto, cujo casario já se avista de novo, desde a Ponta do Malmerendo. Afinal, nunca nada aqui fica realmente longe.
in evasoes.pt
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