©António Luís Campos
O Atlântico infinito desliza por debaixo de nós, fluído, aparentemente uniforme, absolutamente plano, com incontáveis declinações de azul, do índigo ao bebé. Os reflexos adornam-no, ora subtis, ora intensos, num bailado incessante com as sombras ditadas pelas nuvens que nos acompanham nesta viagem, rebeldes, sem ordem e que o acaso projecta na sua superfície. Ao longe, primeiro como se tratasse de uma miragem ou da distorção da diminuta janela da aeronave, agitada pela trepidação de enormes hélices que nos fazem duvidar, sem motivo, da adequação deste aparelho voador a meteorologias tão instáveis, surgem duas pequenas irregularidades no horizonte perfeito. Os minutos escoam-se, inquietos, acumulando-se no relógio de pulso, par a par com as pulsações no coração, materializando a antecipação da chegada ao Grupo Ocidental do arquipélago dos Açores. É quase palpável a excitação. Flores e Corvo. Duas palavras curtas, significativas para qualquer açoriano, pertencentes a um léxico comum na língua portuguesa, que ali aportou no longínquo ano de 1452 pelas caravelas dos navegadores Diogo e João de Teive, pai e filho respectivamente, numa expedição à Terra Nova. A sua localização coloca-as como a fronteira ocidental da Europa, quase a meio caminho entre os continentes europeu e americano. Até aqui a dualidade e o contraste se tornam evidentes: geologicamente estão já na placa continental americana, mas politicamente pertencem ainda à União Europeia.
©António Luís Campos
Ilha das Flores
Ao aterrar em Santa Cruz das Flores – é possível viajar também por via marítima, no Verão, mas a viagem é longa e só os adeptos de navios costumam optar por tal solução – somos brindados à chegada pela humidade tépida que empresta à ilha um ambiente semi-tropical e a torna a mais húmida e verdejante deste arquipélago, famosa por cascatas que nunca secam ao longo do ano e pela vegetação luxuriante que terá estado na origem da sua toponímia.
“A chuva é uma presença familiar, mas torna-se um gosto adquirido, e raramente de forma verdadeiramente intrusiva, pelo menos no Verão. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Literalmente…”
Conhecer verdadeiramente a ilha obriga a botas de trekking e um bom casaco impermeável. A chuva é uma presença familiar, mas torna-se um gosto adquirido, e raramente de forma verdadeiramente intrusiva, pelo menos no Verão. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Literalmente, neste caso! Estamos na ilha mais selvagem, pela orografia acidentada, pelo clima agreste e, consequentemente, pela reduzida (e em decréscimo acentuado) demografia. São menos de 4000 almas que se distribuem por dois concelhos – Lajes das Flores e Santa Cruz das Flores – os principais pólos urbanos, que conta com uma área total de 141km2. É por isso a Natureza que impera e é por ela que nos teremos de embrenhar para conhecer este território!
©António Luís Campos
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No lado Oeste da ilha, pela estrada que serpenteia pela encosta abaixo, há um monumento natural que se destaca na paisagem, emoldurado na Primavera e Verão por milhares de hortênsias em flor: a Rocha dos Bordões! A formação geológica, com dezenas de linhas verticais de origem vulcânica, parece desenhada na falésia! Continuando a descer, tomamos rumo em direcção à Fajã Grande, onde a estrada acaba. Mas não sem antes fazer um pequeno desvio, para visitar a aldeia da Cuada. A pé, uma vez mais, entramos numa viagem no tempo, para trás e para a frente. Passamos a explicar: a Cuada transformou-se numa unidade hoteleira a céu aberto, talvez o mais bem sucedido exemplo de turismo de aldeia em Portugal. Abandonada em meados do século passado pelas sucessivas vagas de emigração que assolaram os Açores, foi lentamente sendo adquirida e recuperada por Teotónia e Carlos Silva, um casal visionário que se recusou a aceitar o fado a que parecia destinada. Casa a casa, a aldeia ressuscitou, e são hoje os turistas que aqui se alojam que lhe trazem de novo vida.
Mas o destino desta jornada é mesmo a Fajã Grande: a localidade mais ocidental da Europa! Ao chegar, instalamo-nos confortavelmente no bar Maresia, afundados num dos sofás vintage a quem a idade não parece fazer mossa, a poucos metros do oceano, que marulha suavemente. Aqui o bom gosto musical casa–se em harmonia com a tranquilidade que a vista proporciona. O entardecer toca a perfeição! E ali, a poucas centenas de metros, o ilhéu de Monchique ergue-se, orgulhoso, como o último território europeu antes do vazio que só terminará do outro lado do Atlântico, na costa norte-americana.
Mais abrigada das tempestades que vêm do mar aberto, a costa Leste da ilha abriga a maioria das localidades. Aqui a tradição baleeira ainda se sente, seja no museu, instalado da antiga fábrica, seja pelas conversas que, num banco de jardim ou ao balcão de uma tasca, vão surgindo inesperadamente. São cada vez menos as personagens desta história centenária capazes de a relatar na primeira pessoa. A última baleia foi caçada nos Açores em 1987, e por isso só os mais jovens baleeiros são ainda hoje vivos. Mas o entusiasmo patente no brilho do seu olhar não engana e é com paixão que contam (e que ouvimos) as aventuras e desventuras desta perigosa actividade que se vai perdendo nas brumas do tempo e que, no momento presente, temos o privilégio de escutar pela última vez… Mais acima, na ponta norte da ilha, o farol do Alvernaz ergue-se como um gigante protector. As arribas que se erguem aos seus pés fazem-no parecer liliputiano, paradoxalmente. De lá, o olhar é magneticamente atraído para o rochedo verde que se perfila na linha de horizonte, à direita. É ela, a mais diminuta mas curiosamente famosa ilha açoriana, o Corvo.
©António Luís Campos
Ilha do Corvo
Considerada por muitos uma mera curiosidade, digna apenas de uma visita de um dia, um toca-e-foge a partir das Flores, na realidade esconde um encanto muito próprio e que, para ser genuinamente apreciado, necessita de espírito aberto de parte do visitante. O Corvo tem várias peculiaridades: uma única localidade, o único local do país em que não existe freguesia, uma única estrada, sem saída. Uma escola, uma farmácia, um hotel, um aeroporto, um porto, uma praia. Praticamente tudo é único. Incluindo os seus 430 habitantes, com uma taxa de crescimento demográfico positiva, em contraste com a norma na maioria das restantes ilhas.
“O Corvo tem várias peculiaridades: uma única localidade, o único local do país em que não existe freguesia, uma única estrada, sem saída. Uma escola, uma farmácia, um hotel, um aeroporto, um porto, uma praia. Praticamente tudo é único. Incluindo os seus 430 habitantes…”
O que parece aparentemente pouco, num território com apenas 3,5km de diâmetro, torna-se muito para quem fica. O contacto humano é provavelmente a experiência que mais marca quem aqui se detêm. Ao fim de umas horas os rostos começam a tornar-se familiares e a conversa solta-se se para tal estivermos disponíveis. É natural, não há muito para onde ir. Os poucos cafés vão-se enchendo com o avançar do dia, à medida que as tarefas do quotidiano vão sendo completadas. Aqui quase todos têm vários “trabalhos”, para além do emprego oficial, que acabam por passar muitas vezes pelo campo: seja a plantar a horta, seja a criar animais que darão ovos, leite e carne ao longo do ano. Nem sempre por necessidade, mas induzidos por uma ligação natural à terra, numa terra que se moldou e habitou a ser autónoma, quando a intempérie corta todo o contacto com o exterior. Embora hoje tal seja raro e não dure mais que uns dias, há algumas dezenas de anos podiam ser semanas ou mesmo meses até que um barco aportasse à ilha.
©António Luís Campos
Incontornável é a subida ao Caldeirão, a principal atracção paisagística da ilha. A caldeira perfeita conta com uma lagoa em que, com bastante imaginação, se podem vislumbrar todas as ilhas dos Açores, em miniatura. Ou um pato deitado! Do lado oposto à estrada que chega até à sua orla está a mais alta falésia marítima da Europa, com uma vertical de várias centenas de metros até ao nível do mar. O Morro dos Homens, com uma altitude de 718m, é o pico mais elevado, visível à distancia. O trilho que percorre o Caldeirão é sem dúvida uma das caminhadas a fazer nos Açores. Descer até à vila a pé será a continuação natural deste percurso.
“Incontornável é a subida ao Caldeirão, a principal atracção paisagística da ilha. A caldeira perfeita conta com uma lagoa em que, com bastante imaginação, se podem vislumbrar todas as ilhas dos Açores, em miniatura.”
À nossa espera poderá bem estar a Kathy Rita, uma extrovertida corvina nascida nos Estados Unidos e que regressou às origens com os pais há 25 anos atrás, actualmente comandante-em-chefe da guest house Comodoro, sempre disponível para nos contar as divertidas peripécias de uma adolescente americana aterrada em plenos anos 80 na Vila do Corvo. Nas suas ruas apertadas vemos painéis solares, antenas parabólicas e publicidade à fibra óptica! Estamos num autêntico laboratório social, e esse é um dos encantos desta ilha. A malha urbana da zona histórica, onde apenas pessoas, cães e gatos conseguem penetrar, com as suas vielas sombrias e contrastantes casas pintadas de branco, permite vislumbres aqui e ali do mar, do porto e das Flores, ao fundo. Mais abaixo, a costa, rendilhada, é encabeçada por moinhos de vento, lembranças de tempos de outrora em que era a própria ilha a produzir os seus cereais.
Nestas ruas encontramos pessoas com histórias de vida longas e ricas, como Inês Mendonça, a artesã que mantém viva a tradição dos gorros do Corvo, ou o seu marido, que constrói ainda fechaduras de madeira ou ainda José Freitas, um pescador que quotidianamente sai para o mar. E é com um sorriso que recebem os forasteiros, à medida que o sol cede à gravidade aparente e ameaça afundar-se num mar de azeite, resplandecentemente dourado. A pequena praia de areias negras no topo da pista do aeroporto surge então como um oásis líquido ao fim do dia, ao fundo da maior recta da ilha. Crianças chapinham nas águas protegidas pelas rochas vulcânicas, enquanto várias pessoas, de trajes garridos, fazem o seu jogging vespertino, subindo e descendo as escadas de acesso ao areal. Não é tão diferente assim o quotidiano no Corvo, se aceitarmos o seu isolamento geográfico e todas as condicionantes que tal implica. Mas a experiência para quem o visita, essa sim, é única e permanecerá indelével!…
in momondo.pt
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