sábado, 2 de julho de 2016
Aldeia da Cuada - É preciso uma aldeia para criar uma ilha
É um portal com caminhos para paraísos logo ao virar da esquina e é também um marco em si própria. Ao longo de quase três décadas, esta aldeia abandonada foi recuperada com dedicação por uma família. A última casa original, a 17.ª, foi agora terminada. Aldeia da Cuada, uma ilha dentro da ilha.
Catrapisco os olhos e sei que já há uma luzinha ténue a invadir-me os sonhos. Afasto a manta de retalhos e ajoelho-me à janela de pedra. O dia começa a clarear, o céu e o mar parecem ainda a mesma coisa. Vou descalço até ao meu jardim da minha casa de pedra.
Está um silêncio impossível, apenas acompanhado do chilrear de uma orquestra da passarada. Fico a admirar tudo isto, quadro inteiro de pedra e verde, como se o momento abarcasse toda a aldeia, toda a ilha.
É certo que as Flores dão-nos uma explosão de muito, toda uma natureza de mãos largas, entre lagoas, cascatas em catadupa, poças oníricas e uma costa de beleza brutal, fajãs de fábula e grutas assombrosas.
Nunca nos iludamos: é tudo da natureza, sim. Mas também é tudo do engenho humano, da incomensurável persistência açoriana. É também esse o caso desta aldeia velha de séculos reconquistada por dois pares de mãos. Já não é a aldeia que era, é museológica e turística, mas é ainda e sempre a Aldeia da Cuada.
“Foi toda abandonada até aos anos 1970, só havia duas casas ainda com telha, o resto estava tudo em ruína”, diz-nos Carlos Silva, que, com a mulher, Teotónia, ambos hoje com 66 anos, tornaram a Cuada o projecto das suas vidas. São quase três décadas de dedicação a esta obra que, por sinal, atinge agora um marco: a recuperação da última construção original, a 17.ª, contando palheiros reconvertidos. “Isto começou tudo com uma asneira”, conta-nos Carlos enquanto vamos serpenteando pela aldeia, repartida pelas casas quase isoladas umas das outras, entre caminhos de lajes e jardins.
A “asneira” para eles, que costumavam ir veranear para a fajã Grande, ali a dois quilómetros, foi comprarem uma das casinhas abandonadas na aldeia nos anos 1980. Já não restava ali ninguém, nesta terra que remontará a 1676. O documento mais antigo será até um registo paroquial de casamento de 8 de Novembro de 1705, está visto que o mote romântico perdura. Mais de três séculos depois, cá estamos, nesta aldeia abandonada, em grande parte em nome da emigração, que até há pouco nunca tinha visto um veículo motorizado (nem, diga-se, água canalizada ou electricidade).
Ora, depois de comprarem uma das casinhas, surgiu a oportunidade de comprar outra, depois outra. Começaram seriamente a pensar num projecto turístico, conta Carlos, que trabalhava nas Finanças, e Teotónia, que trabalhava na Sata. “Não foi fácil”, lembra: a Direcção do Turismo da altura, por exemplo, até “considerou louvável a iniciativa” mas não aprovou. “Diziam que nunca iria ter viabilidade económica.” Quem é que quereria vir para esta aldeia perdida nesta ilha perdida nas lonjuras atlânticas de Portugal, aqui mesmo de onde podemos olhar para aquele que é ponto mais ocidental do país, o ilhéu de Monchique e, virando a cabeça, pela série de cascatas lá ao longe, do outro lado, como nascendo de um céu verde? Quem? Nós? Sim.
A aldeia foi sendo relevantada do chão, casa a casa. Hoje, já vemos projectos parecidos pelo país. Mas estamos a falar de “há uns 26, 27 anos”. “Não se falava sequer em turismo rural.” “Foi a primeira do país a ser classificada como Turismo de Habitação”, lembra o pioneiro, depois Turismo de Aldeia. Seria a única deste género no arquipélago (foi entretanto feito projecto similar em São Miguel, no Sanguinho) e agora é também património protegido, para que não surjam surpresas “de betão” e para que este seja um santuário de história e intimidade – até há bem pouco tempo o único acesso à aldeia era por um caminho velho, um longo e florido caminho murado e vegetal (belo de tirar o fôlego), que começava na Igreja de Santo António de Lisboa (tal como se lê na fachada), na estrada para a fajã Grande, e ia até à casa do Império do Divino Espírito Santo da Cuada, entrando-se então na aldeia posta no sossego do seu planalto.
Actualmente, já há acesso viário directo à recepção — que é também um pequeno museu da aldeia — à entrada. Mas, ainda assim, para circular por aqui, só a pé por caminhos de pedras que não são para todos (Carlos reconhece que ainda falta uma adaptação para cidadãos com dificuldades de mobilidade). Isto dito, carregar as malas de uma ponta à outra da aldeia ainda custa — não há problema, Sílvio, que cuida da aldeia, leva-as a trote e garante que “não custa nada”, estão habituados (nós experimentámos, custa).
A conservação dos caminhos “tal como eles eram” pode ser uma teimosia, mas faz parte do conceito global do casal de ser fiel ao ambiente original sem adulterar mais que o necessário. As casas foram reconstruídas com a sua pedra, adaptando-as aos tempos modernos, mas seguindo a sua “construção pobre” pedra sobre pedra. No início até era tudo mais primitivo ainda. “As primeiras casas que alugámos foi até com lamparinas a petróleo, não havia luz eléctrica.” É então que aponto para o único detalhe disruptivo neste onírico éden: postes e fios que cruzam algumas partes. “Estamos a tentar fazer com que isso desapareça daqui…”, diz. A ideia é passá-los em breve a subterrâneos.
“Bom dia, sejam bem-vindos”, diz-nos agora Teotónia, a cara-metade da Cuada, que, acompanhada pela filha, ultima os preparativos da maior casa da aldeia, onde há seis quartos e também sala para pequenos-almoços. Tal como por todas as casas, debruadas a pequenos detalhes íntimos e familiares, também por aqui se vêem utensílios de outras épocas e quadros de exímios bordados. “Muitas são coisas que já tinha, outras vou adquirindo, não tenho formação nenhuma em decoração nem nada disso, mas vou vendo as coisas e vou por intuição”, confessa Teotónia, contando que antes fazia “muitos crochézinhos” mas agora já não. “Estes vieram do Pico, de onde é o meu marido, foram oferecidos pela minha sogra, são lindos, obras de arte". E são. “Isto tudo é um trabalho de pormenores, assim é que dá gosto”, sorri. É também tudo isto que retira a carga Disney ques sempre paira sobre um projecto assim.
Até porque a família Silva também vive na aldeia, intercalando-a com a sua casa em Santa Cruz. A aldeia continua, igualmente, fiel às suas raízes e nem toda está apenas entregue ao turismo ou às visitas de passagem. Por exemplo, aqui estamos agora na casa do Império do Espírito Santo da Cuada, provavelmente o mais antigo das Flores, ainda e sempre, apesar do esvaziamento da aldeia, pertença da irmandade e parte dos festejos destas grandes e solidárias festas açorianas. Acaba, aliás, mostra-nos Carlos, de ser restaurado, incluindo modernizações (casas de banho, por exemplo…, ao lado) e, na casa, também as imagens e símbolos religiosos rebrilham de dourado, azul e vermelho. Está tudo pronto para a festa anual — que inclui partilha de carne entre os “irmãos” —, que foi agora em Maio, precisamente.
Continuamos a cirandar pelas casas, paramos para sentir o cheiro intenso das flores num recanto, noutro os loureiros, prestar atenção ao que nos dizem os melros e tentilhões noutro. E ali no meio do campo, aponta Carlos, estão outros habitantes importantes, a vaca Mimosa e a burra Florentina. A cabra Tina também deve andar por aí. Mantendo ainda a tradição, na aldeia também há agricultura. Para já, só pelos proprietários. Mas em breve querem abrir a horta aos hóspedes: “Podem ir buscar uma couve para o almoço e plantar outra.” Nada como meter as mãos na terra para vivê-la melhor.
E assim revivida, a Aldeia da Cuada, continua, de certo modo, a ser familiar. Não só porque “muitos turistas, muitas famílias, voltam todos os anos e ficam na mesma casa, até”, como lembra Carlos, mas também porque, não esqueçamos, este é um projecto familiar, é agora, afinal, a aldeia dos Silvas. E a memória de quem cá viveu não se apaga nem permanece apenas em cenário: cada casa tem o nome de quem lá vivia, como se de uma “identidade” se tratasse. Nós ficámos na Casa Fátima mas há a Casa da Esméria, da Luciana, do Antonino, do Fagundes… A última, a derradeira a ser terminada, é a Casa do Luís.
in publico.pt
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