Numa das mais remotas ilhas dos Açores, a Graciosa, um italiano quis reanimar duas vidas passadas: a aventura açoriana de Antonio Tabucchi e a gloriosa saga da baleação. Mulher de Porto Pim era para ser um rádio-drama, mas acabou por ser outra forma de respiração boca-a-boca.
A vida passada de Franco Ceraolo ocupa as quatro paredes da oficina que construiu no jardim da casa onde quis ter futuro – não o futuro que podia ter tido como cenógrafo em Itália, país que “o berlusconismo” já tinha tornado inabitável e de que queria sair à força toda (mas sair com estrondo, porque o que tinha na cabeça era tão definitivo quanto “rasgar o passaporte”), mas o futuro que parece invencivelmente radioso quando visto da Graciosa, mesmo quando a bruma baixa ao ponto de fazer a ilha desaparecer do mapa, portanto desaparecer do mundo (acontece muito, ao nível das várias vezes por dia).
Também foi essa possibilidade de desaparecimento que levou um cenógrafo de 52 anos (agora 60) a querer arrumar toda a vida passada nas traseiras de uma casa de campo então à venda num lugar isolado da mais remota e menos visitada das ilhas do Grupo Central dos Açores (e logo um lugar com um daqueles nomes que não dá para relativizar: Esperança Velha). É uma oficina grande, com um pé direito incomum, porque o passado italiano de Franco Ceraolo – um passado que inclui as ferramentas de trabalho do avô Ludovico, os seus cenários para o Teatro Alla Scala de Milão, muitas horas no estúdio com Fellini (Ginger e Fred, 1986; A Voz da Lua, 1990) de que guarda diversas provas documentais, meses no deserto marroquino a filmar com Scorsese (Kundun, 1997) e toda a saga italiana, versão bastidores, de A Melhor Juventude (Marco Tulio Giordano, 2003) – ocupa imenso espaço. Tanto que não cabe todo ali: o molde do pé de Giulietta Masina, por exemplo, que encontrou num velho sapateiro da Via Margutta, está na parede da sala; os desenhos que Fellini fez para lhe explicar que tipo de visões tinha para os seus filmes estão nas paredes da cozinha.
Temos todo esse passado à nossa frente (“Isto é um pouco… Não, não é um cemitério, mas é outra vida”), e ainda por cima já houve um interminável aperitivo com enchidos, queijos e vinhos – mais uma sopa italiana que ele próprio cozinhou para acabar de vez com a ideia de um jantar ligeiro, pasta e fagioli –, quando chega a altura de lhe perguntar como é que veio aqui parar. É então que ele usa a sua própria palavra para desaparecimento, uma palavra que também está em Mulher de Porto Pim (1983), de Antonio Tabucchi, o livro onde confirmou a existência de um mundo à parte no Oceano Atlântico (um mundo de suicidas e de sobreviventes, de baleias e de baleeiros) e que ele está a dias de transformar num pequeno espectáculo para 40 pessoas no barracão de madeira do Clube Naval da Graciosa.
Palavras dele, que devem ser lidas como um prólogo: esta é a história de um naufrágio.
Dois telefonemas
Na vida de Franco Ceraolo, a Graciosa foi uma coincidência – também poderia dizer que é o destino, se acreditasse nele. “Queres saber a história do naufrágio? Eu estava à procura de um lugar para o futuro, porque grandes cidades como Roma não são bons lugares para reformados e Roma em particular estava a ficar desconfiada, estava a ficar pior: o tipo de cidade onde se entras num café e dás os bons-dias toda a gente fica a perguntar ‘o que é que este quer?’”, explica. Já tinha ouvido falar dos Açores (“Gosto muito de ilhas e Itália tem ilhas lindíssimas, só que no Verão há demasiados turistas e no Inverno é a morte civil”), mas não conseguia encontrar nada sobre os Açores nas livrarias – nem na grande livraria de viagens que havia na rua onde vivia. Foi exactamente isso que o fez vir: “Se não havia nada, então era mesmo um lugar que ainda merecia ser visitado.”
Foi em 2000. Nessas férias Franco visitou todas as ilhas dos Açores à excepção do Corvo e das Flores. Lembra-se “perfeitamente” de ter pensado: “Para viver é o lugar ideal; para fazer turismo nem tanto. Nunca se sabe se há sol.” Um “lugar isolado” é que “não é de todo”: a Graciosa, onde escolheu ficar porque ali encontrou forma de viver à altura da tradição italiana da casa de campo (“Esta casa é uma ilha dentro de uma ilha. Não havia aqui ninguém”), fica “a 3.300 quilómetros de Roma e a 3.190 quilómetros de Nova Iorque”: “Tive mais noção disso quando telefonei ao Dante Ferretti, com quem trabalhei dez anos, para lhe dar os parabéns pelo Oscar [de direcção artística] que ganhou com o Sweeney Todd, e ele me disse que estava em Boston: Boston fica mesmo aqui em frente.”
Do outro lado da mesa iluminada por um globo terrestre que ocupa o centro da oficina de Franco, Fernando Mora Ramos, encenador, actor e director do Teatro da Rainha, também se lembra de um telefonema – o telefonema em que Maria José Lancastre, viúva do escritor Antonio Tabucchi, lhe disse que algures na Graciosa um cenógrafo italiano queria fazer um rádio-drama a partir de A Mulher de Porto Pim e que ele era a pessoa certa para o ajudar. “Um italiano que trabalhou com o Fellini e o Scorsese? Na Graciosa? Não parecia possível mas era. E eu lá vim.”
Um lugar para viver
Houve uns anos em que Franco Ceraolo de facto esteve na Graciosa a desaparecer do mundo. Entretanto, em 2013, fundou, com um grupo de heróis locais que o vêem como “um perfeito conterrâneo” – o professor de Matemática Manuel Jorge Lobão, o empresário Luís Vasco Gregório (que Fernando Mora Ramos nos apresenta como “o grande introdutor da meloa na Graciosa” e, vimos a saber depois, é dono da bomba de gasolina mais central da ilha, sócio do enorme hotel moderno onde não ficam tantos turistas assim e concessionário das Termas de Carapacho), a bancária Sandra Santos, e o também empresário, e membro da Câmara do Comércio, Carlos Canto Brum – a associação que hoje, amanhã e depois faz a sua primeira intervenção na ilha com a leitura encenada de Mulher de Porto Pim.
O objectivo da Cross-Over, explica Manuel Jorge Lobão no programa do pequeno espectáculo que por estes dias desaloja o bar do Clube Naval, é justamente “trazer o mundo à Graciosa e, num movimento pendular, levar a Graciosa ao mundo”, para que a ilha escape ao destino de “ser um ponto perdido no mapa” e se transforme num “nó de cruzamentos vários”. Parece romântico, e é, mas a Graciosa não tem assim tantas alternativas: definitivamente esgotado, mesmo antes da proibição de 1984,o filão da baleação, comprometido o sector da pesca com a diminuição das quotas, perdido para as outras ilhas do arquipélago o campeonato do turismo (que na Graciosa será sempre de pequena escala ou não será), o futuro aqui parece irremediavelmente dependente da criação de vacas. É o próprio presidente da Câmara, Manuel Avelar, que o diz ao Ípsilon numa conversa que não podia ser mais informal, apesar de decorrer no Salão Nobre: “A agro-pecuária é a base de sustentação da Graciosa, mas quando desce o preço da carne ou do leite tudo treme. Depois há outros dois pilares, as pescas e o turismo, mas nesse aspecto só temos dois nichos de mercado: as termas e o mergulho. Não chega para fixar as pessoas aqui. Em dez anos perdemos 500 ou 600 pessoas. Quem sai para estudar não volta, porque não tem emprego, não tem condições. Temos de ser realistas: somos uma ilha pequena.”
Pequena mas “ideal para viver”, insiste Franco. Não para um médico (a não ser que faça a especialidade de Medicina Geral e Familiar, porque não há hospital), talvez não para um jornalista, nem para um engenheiro, mas para um artista como este cenógrafo italiano que aqui quis naufragar, ou mesmo para outro mais novo que precise de uns meses de silêncio e de céu desobstruído para trabalhar. Para os sócios da Cross-Over, a Graciosa pode perfeitamente ser isso: um lugar de intercâmbio, uma plataforma para residências artísticas. O projecto Mulher de Porto Pim é a primeira manifestação dessa vontade à atenção dos habitantes da ilha – antes houve duas exposições-embaixada em Roma, uma sobre a calçada portuguesa e outra de fotografia subaquática –, e também a primeira das colaborações previstas com o Teatro da Rainha, que no início de 2016 voltará a Santa Cruz da Graciosa para iniciar um projecto com a comunidade escolar.
Imaginar com os ouvidos
Antes disso, e mesmo que não haja luar (“Precisávamos de três noites mansas com lua cheia e com o mar amainado, mas como é que isso se arranja? Nem na bruxa”), a Cross-Over estreia esta Mulher de Porto Pim que Fernando Mora Ramos fez passar de rádio-drama a leitura encenada com dois actores que trouxe do seu teatro nas Caldas da Rainha (Carlos Borges e Fábio Costa) e os fundadores da associação (menos Carlos Canto Brum, que é mais de bastidores). Parece um pequeníssimo espectáculo – amadores e profissionais juntos, de papel na mão, a ler quatro dos textos que Tabucchi inclui no seu livrinho sobre os Açores: Mulher de Porto Pim, Uma Caça, Antero de Quental, uma vida e o post-scriptum que o encenador transformou no coro, Uma baleia vê os homens – mas tem a força de uma operação de respiração boca-a-boca. Em menos de uma hora, há duas memórias que são reanimadas, a aventura açoriana de Tabucchi entre o Faial e São Miguel e o glorioso passado da baleação (tão glorioso que o primeiro cinema ambulante da Graciosa foi pago com os lucros da venda do óleo da baleia, que atingiu preços exorbitantes no pós-guerra). Não é assim tão fácil encontra-lo, agora que está reduzido ao armazém do Museu Municipal onde se conservam os artefactos da caça à baleia (incluindo um dos 12 botes baleeiros que estiveram ao serviço da actividade), aos quatro antigos postos de vigia dispersos pela ilha e ao ancoradouro onde as baleias trancadas ao largo da Graciosa eram esquartejadas e derretidas para sustento dos graciosenses.
Vê-se das janelas do Clube Naval (portanto vê-se de Mulher de Porto Pim), esse ancoradouro, espécie de figuração do destino da baleia que o público do espectáculo ouvirá morrer, afogada no seu próprio sangue. Luís Vasco lembra-se de ter visto “esquartejar muitas” – e de ter ido à caça uma vez com “um arpoador, o Casimiro, que era um monstro, um homem enorme”: “Depois de muitas horas no mar, finalmente ele lá trancou a baleia e eu deitei-me, enjoadíssimo”, conta-nos ao almoço antes de nos levar a conhecer outro herói local, Rufino Pereira, 84 anos, um dos últimos baleeiros da Graciosa que sobreviveram para contar.
Dentro da garagem onde guarda vários souvenirs dessas jornadas – tal como Franco, também tem uma vida passada pendurada nas paredes: a lança, o arpão “que matou muitos cachalotes” e a espelha, o instrumento com que “se desfaziam os toucinhos” antes de os derreter para fazer óleo, vieram todos de uma baleeira onde andou com o pai, a Senhora de Fátima –, Rufino confirma-nos que a luta era mesmo como Tabucchi a descreve no conto que abre a leitura encenada, e que até a mais impossível das imagens (o sangue da baleia, coagulado, a formar um banco de coral em cima do Atlântico) é verdadeira (há outra, igualmente poderosa, que Tabucchi não usa mas Rufino pôs num livro editado pelo município: “Os cachalotes quando estão a morrer botam-se de lado: nunca morrem sem virar a cabeça para o sol”).
É uma longa história, a da caça à baleia na Graciosa: “Nunca tivemos tantos baleeiros como no Pico, mas de Maio a Setembro tudo arreava à baleia: polícias, caiadores, lavradores, pescadores. Eu era carteiro, mas como o correio só chegava por barco de 15 em 15 dias também andei enrolado na baleação: mal ouvíamos a buzina do vigia, largávamos tudo; muitas vezes fui com a farda de carteiro no corpo. Havia quem se governasse com isso, mas no meu caso não era pelo dinheiro. Era o bicho. Ainda hoje o tenho. Talvez por ser neto e filho de baleeiros: o meu avô foi o primeiro homem a apanhar uma baleia na Graciosa, já com 50 e tal anos.”
A história que Rufino podia ficar a contar o dia todo também é em parte a história da Mulher de Porto Pim. É ela, a baleia, que emerge entre os contos em que Tabucchi fala dos Açores como uma terra de náufragos e de naufrágios, dando-se a ouvir não só no texto como na banda-sonora original de Carlos Alberto Augusto. Fernando Mora Ramos está a contar com com “os ouvidos mais limpos” dos habitantes da ilha para que esta história não seja a história de um naufrágio, antes uma história que chega a bom porto: “Fazemos uma experiência radical de leitura, sem cenário, sem truques, sem artifícios, na esperança – velha – de que estas pessoas ainda tenham a disponibilidade para ouvir que nas cidades se perdeu. É uma experiência que está próxima dos gregos, a de imaginar com os ouvidos, a partir das palavras e não das imagens de que nos tornámos desgraçadamente dependentes. Nisso este lado precário interessa-me: o lado de fazer tudo com nada.”
Pode ser uma missão impossível, face à concorrência da stand-up comedy no Centro Cultural. Nisso quem sobe hoje, amanhã e depois ao palco está em pé de igualdade com quem se sentar na plateia: “Vamos ver o que acontece. Nos Açores o grande espectáculo é o sismo; é uma escala de espectacular com que uma leitura encenada nunca poderá competir.”
in Publico
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