segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Os Açores estão na moda !




O suplemento do Jornal Publico, «Fugas» propõem uma viagem aos Açores ..

Açores, verde esperança

Os céus do arquipélago abriram-se a novos voos com a chegada das 'low cost' a Ponta Delgada e São Miguel pulsa de esperança. Fomos correr os ex-líbris da maior ilha açoriana e medir o optimismo cauteloso que se vive.

“Está uma nuvem muito cerrada a cobrir a ilha toda, mas tanto está assim como desaparece a seguir. É por isso que somos uma ilha muito verde.” Da janela do avião já se vislumbra São Miguel e Teresa, 55 anos, ora segue levantada no corredor ora virada para a fila de trás, os olhos sempre colados a casa, guiando os amigos pelo cenário que se pinta naquele recanto a meio do Atlântico, os seus humores e pormenores. “O prédio mais alto que vêem ali em Ponta Delgada é o Solmar [o primeiro centro comercial da cidade].”

Teresa é natural da freguesia de Achada, no Nordeste da ilha, mas vive em Alverca “há 30 e tal anos”. Há mais de um ano que não vinha a casa. Hoje regressa para mostrar a ilha a uma família amiga. “Tinha prometido que quando viessem aos Açores vinha com eles para lhes mostrar tudo”, conta. “Há coisas tão bonitas que as pessoas geralmente não chegam a conhecer”, lamenta, enumerando alguns dos ex-líbris da região Este da ilha (o Parque Natural da Ribeira dos Caldeirões, com os seus “moinhos e quedas de água”; o Nordeste, com os seus miradouros e floridos de hortênsias, azáleas e conteiras — “que chupávamos quando éramos pequenos porque era muito doce”; o Sanguinho e o Salto do Prego, na freguesia de Faial da Terra), regressando minutos depois para nos revelar mais dicas transbordadas de orgulho pela ilha-natal.

Infelizmente, as 48 horas que estaremos em São Miguel não chegarão para descobrirmos nenhuma das suas sugestões, mas acreditamos que a amiga, Maria Ausenda Soeiro, e a família não poderiam ter ficado em melhores mãos. O voo inaugural da easyJet para Ponta Delgada foi também uma estreia especial para esta septuagenária e para o marido, Álvaro, de 72 e 73 anos respectivamente: viajaram pela primeira vez de avião. “Foi espectacular, muito calmo”, descreve o casal natural de Lamego, a viver em Lisboa há mais de 50 anos. “Nunca tinha conseguido [andar de avião] porque tinha muito medo, mas os meus filhos pediram tanto”, conta Maria Ausenda, já no Aeroporto João Paulo II. Gostavam de “ir às ilhas todas”, “de barco”, mas a semana de férias ficar-se-á por São Miguel — a maior ilha do arquipélago e a principal porta de entrada nos Açores — com Teresa, os filhos, a nora e o genro.

No total, seguiam 172 passageiros a bordo do Airbus A320 da easyJet, que às 9h05 (mais uma hora em Portugal Continental) aterrava em Ponta Delgada, oficializando assim a liberalização das ligações aéreas entre os Açores e o continente. “Hoje concretiza-se aquilo que é a maior reforma de sempre ao nível das acessibilidades da região”, defenderia minutos depois o secretário regional do Turismo e dos Transportes dos Açores, Vítor Fraga, na pequena cerimónia de celebração no aeroporto, que ia recebendo quem chegava com cantares, danças e iguarias regionais.

A liberalização das rotas para Ponta Delgada (São Miguel) e Angra do Heroísmo (Terceira) marca o fim do monopólio TAP e SATA nas ligações ao continente e a entrada das companhias aéreas de baixo custo no arquipélago (para já apenas com ligações a São Miguel). A easyJet tem desde 29 de Março três voos semanais entre Lisboa e Ponta Delgada (mais um a partir de Junho), enquanto a Ryanair arrancou no início do mês com duas ligações diárias a Lisboa e uma ao Porto (e, a partir de hoje, um voo semanal Ponta Delgada-Londres). A TAP também reforçou a oferta para a maior ilha açoriana, passando a sete ligações semanais, enquanto a SATA diminui-a, apostando para já nos voos para a Terceira e assegurando em exclusivo as rotas não liberalizadas e sujeitas a obrigações de serviço público (Faial, Pico e Santa Maria).

As alterações no mapa aéreo açoriano representam um aumento de 40% na oferta de voos para Ponta Delgada em relação a 2014 (acréscimo que ascende a 74% se considerarmos apenas a época baixa) e uma diminuição dos preços de voo, que chegam agora a custar um terço do valor anteriormente praticado. Há novos hotéis a abrir este ano na ilha e pedidos de licenciamento de 1800 novas camas em todo o arquipélago, incluindo 21 hostels em São Miguel. Segundo a Associação da Hotelaria de Portugal, as reservas de hotéis feitas directamente pelos hóspedes para os próximos três meses aumentaram cerca de 20% em relação ao ano passado, antecipando um novo perfil de turista num arquipélago onde 95% dos visitantes chegava até agora a partir de agências de viagens ou de operadores turísticos.

A expectativa é muita, tão esperançosa quanto cautelosa, num ano de grandes mudanças na região autónoma: por um lado, a promessa de mais turismo com a liberalização das rotas aéreas, por outro, e simultaneamente, a apreensão motivada pelo fim das quotas leiteiras na Europa, depois de 30 anos em vigor (segunda a Lusa, os Açores produzem actualmente 30% do leite nacional, sendo que metade da economia da região autónoma assenta na agropecuária e, dentro dela, o leite pesa mais de 70%).




Lagoa aqui, baleia ali

Tínhamos acabado de aterrar e pouco depois já serpenteávamos os prados verdejantes rumo ao primeiro cartão-postal da ilha, que se o tempo meteorológico seguirá sempre do nosso lado, o do relógio correrá impiedosamente contra nós. Dobramos uma curva, subimos outra e, de repente, lá está ela, larga, aos nossos pés. Um ovo de água aqui, uma bola límpida acolá, a separá-las um fio de arcos de pedra, ao largo uma rodela de casas brancas. Estamos na Vista do Rei e a lagoa das Sete Cidades dorme lá em baixo, as lagoas Verde e Azul esquecidas das tonalidades que lhes deram nome, misturando cores de água, arvoredo, céu e nuvens, nem por isso menos belas, menos arrebatadoras. Um anel de escarpas frondosas separa-as do oceano, pintado num lampejo no horizonte, como se as desligasse da realidade, como se ali o tempo corresse diferente, apartado do mundo. Influências da geografia ou não, conta-nos Rui Amen, gestor de produto do Turismo dos Açores e nosso guia por estes dias, que há quem viva na freguesia lá em baixo e nunca tenha visto o mar. Talvez quem tenha aquele cenário à janela não precise de nada mais.

Nós, por outro lado, é para as ondas do Atlântico que vamos sacudir o corpo pouco depois, no encalço dos cetáceos açorianos. Ao longo do ano, mais de 20 espécies de baleias e golfinhos cruzam as águas do arquipélago, entre residentes e migratórias, correspondendo a um terço das espécies de cetáceos existentes em todo o mundo. As probabilidades apontam para que se aviste um máximo de três num passeio de barco, mas depois de largos minutos de um mar cor de prata infinitamente vazio começamos a acreditar que as nossas estão próximas de zero. Até que alguém grita “Estão ali, estão ali!” e o suspense que se vive a bordo rebenta numa excitação de correrias, sorrisos e centenas de fotografias.

Os troncos cinzento-escuro que parecem boiar à tona de água são na verdade dorsos de três cachalotes, que pouco depois mergulham, deixando o mar de novo infinitamente vazio e a embarcação em silêncio. Os vigias em terra dizem haver outro ali perto, arrancamos e pouco depois lá está ele, denunciando-se num esguicho de água. “Olhem, está a preparar-se para fazer um mergulho em profundidade”, avisa Hugo Mendes, o biólogo a bordo. Isso significa que desta vez lançará a cauda aos céus, deslizando-a graciosamente sobre a linha de água. Ficaremos pouco tempo em São Miguel mas em compensação levaremos todos os postais ilustrados da ilha.

“Tiveram sorte, já não via um cachalote há meses”, admite Hugo Mendes. Apesar de residirem ali todo o ano, são uma espécie tímida, ao contrário dos golfinhos comuns que saltitam agora colados ao barco. Hugo, 33 anos, é biólogo marinho na Picos de Aventura desde o ano passado. Aos nove anos veio viver para os Açores com os pais, atrás da qualidade de vida que lhes fugia nas filas de trânsito em Odivelas. Hoje continua onde quer viver. “Estou extremamente feliz aqui”, conta.

A chegada de mais turistas não o assusta, nem teme pelo “paraíso” que ali encontrou e que foi considerado o destino mais verde do mundo no final do ano passado, conquistando a posição cimeira no Top 100 Global de Destinos Sustentáveis da Green Destinations. “Acarreta a grande responsabilidade de continuarmos a insistir neste turismo sustentável, mas no caso do whale whatching acho que temos das melhores leis mundiais a nível de conservação de cetáceos, por isso acho que estamos aptos a esse novo volume de visitantes”, defende. Na balança do optimismo pesam ainda a “excelente oportunidade” que representa “para o turismo e para a economia local” e a perspectiva de “maior animação e dinamismo”, com “novas introduções a nível de fusões culturais”.

Também Manuela Vieira, sexta geração da Cerâmica Vieira, fundada em 1862 na Lagoa, só vê vantagens na possível entrada de novos turistas no arquipélago. “Mais turismo significa mais dinheiro. Vamos todos respirar um bocadinho mais aliviados”, defende Manuela que, com o pai e uma das duas irmãs, gere a empresa familiar, que se anuncia como a “única fábrica de cerâmica vidrada nos Açores”. “Não vale a pena estarmos aqui a criar peças para não virem turistas comprar”, admite Lúcia, 35 anos, 19 deles passados a moldar as pastas que, depois de cozidas, vidradas e pintadas à mão, animam o museu e a loja que termina cada visita. Hoje são “boiões para sal ou pimenta”, indica, de olhos sempre atentos ao barro que vai trabalhando na roda de oleiro.

Apesar de o passeio pelas instalações ser gratuito — passando por todos os processos “para que as pessoas percebam como é que as peças chegam à prateleira” —, é sobretudo do turismo que a empresa vive, materializado nas vendas no final da visita. Por isso, é com “muito entusiasmo” que Manuela aguarda sobretudo a vinda de mais portugueses, os melhores clientes da casa. “Muitos sempre sonharam vir e agora [com a baixa de preços nos voos] já podem”, diz. Lúcia, por outro lado, aponta os aviões na direcção oposta. “Assim as pessoas já podem ir passear. Com os voos caros não conseguíamos sair daqui”, lembra. Além da liberalização parcial do mercado aéreo açoriano, a nova lei marca também um tecto máximo a pagar pelos residentes no arquipélago para uma viagem de ida e volta para o Porto ou Lisboa (134 euros). “Nunca fui [ao continente], agora talvez vá, tenho lá uma irmã”.



Uma cozinha natural a céu aberto

Uma frágil sebe separa os turistas dos montículos de terra fumegante onde o famoso cozido das Furnas vai cozendo lentamente. Do lado de lá da vedação, João Pacheco e os colegas vão retirando cada panela, uma a uma, como se de um acto solene se tratasse. Afastam a terra revolvida, levantam a tampa do buraco com a enxada e depois, cada um com um ferro encaixado na asa, içam a braços o tacho envolto em panos brancos, onde diferentes carnes, legumes e enchidos estiveram a cozer nos vapores vulcânicos durante cerca de seis horas. Passa pouco das 12h e os últimos cozidos vão ser levados para os restaurantes da zona, terminando um dia de trabalho que começou às 4h.

Lugar turístico por excelência na ilha — “costumávamos dizer que para saber quantos turistas visitavam São Miguel bastava trazer um banquinho e ficar a contá-los”, recorda Rui Amen —, as caldeiras da lagoa das Furnas vivem desde Março uma nova etapa: a entrada, até agora gratuita, passou a ser paga (0,50€ por pessoa), assim como a confecção particular do cozido (3€) e o estacionamento (quando lá estivemos a tabela estava a ser revista, sendo que a taxa sobe a cada 15 minutos e é validada à saída). “Concordo com os 0,50€ porque é uma ajuda e isto fica mais arranjado e organizado”, defende João Pacheco, que ali trabalha há 15 anos, confessando, no entanto, que o estacionamento devia continuar gratuito e que não é justo a utilização particular das caldeiras ser gratuita para os residentes do concelho da Povoação. “Ou pagavam todos ou não pagava ninguém.”

Luís Pires Coelho, que encontramos a encher um garrafão de água naturalmente gaseificada na nascente do Rêgo, no centro da freguesia das Furnas, não está preocupado com as novas taxas. “Normalmente peço ali em baixo e eles deixam-me pôr lá o cozido, senão uso uma [caldeira] que temos aqui escondida”, conta. À beira da estrada, uma colecção de ramos e terra tapa o forno natural, cuja localização só a vizinhança mais próxima conhece. “Ponha a mão ali em cima, vai ver que está quente.” Comprovamos. Um pouco por toda a localidade há evidências secundárias da actividade vulcânica, desde o cheiro a enxofre (menos intenso do que aquilo que antecipávamos) às fumarolas, das águas termais às caldeiras, ora secas ora jacuzzisborbulhantes.

“Há aqui mais de 28 tipos de águas minero-medicinais”, indica Rui Amen, conduzindo-nos por diversas fontes de diferentes temperaturas, sabores e texturas. É numa delas, que a placa de azulejos diz jorrar “água santa”, que Luís Pires Coelho faz chá e café. “Depois do jantar trago a chávena e fico aqui sentado”, conta o bancário reformado. Chegam a juntar-se “20 ou 30 pessoas”. Nos meses de Verão é, no entanto, a Caldeira do Esguicho, a passos de distância, que tem maior movimento. Ali são cozidas as maçarocas de milho que são depois vendidas nas várias bancas da zona. Hoje, no entanto, são ovos que se cozinham na água fervente, um balde e um cabo a improvisar. “Um senhor disse-nos que conseguíamos cozer os ovos aqui, bastava quinze minutos”, conta Simão, de 15 anos, que veio com quatro amigos de Pico da Pedra passar uma noite no parque de campismo das Furnas.

Uma autêntica cozinha natural a céu aberto, portanto. Se tivéssemos tempo, quem sabe, talvez ali voltássemos para fazer o chá que descobrimos na Fábrica Gorreana, fundada em 1883. É a mais antiga e uma das duas únicas fábricas, juntamente com a Porto Formoso, localizada a poucos quilómetros de distância, que produz chá na Europa, desde a folha ao saco. As visitas às instalações começaram no princípio do século XX, com o bisavô de Madalena Mota, quando Jaime Hintze ali instalou a hídrica que ainda hoje produz a electridade contínua que faz as máquinas funcionarem. Foi o primeiro sítio a ter luz na ilha e “as pessoas chegavam aqui para tomar chá e ver o que era a luz eléctrica, devia ser tipo a NASA”, brinca Madalena, filha da actual proprietária, Margarida Hinzte. “Hoje em dia já não entram para ver uma fábrica da Revolução Industrial, mas uma fábrica antiga”, já que a maquinaria é a mesma, uma delas ainda com uma pequena suástica gravada.

A visita, que percorre todas as fases de produção, desde os campos frondosos de camélias (matéria-prima do chá) à sala de provas, mantém-se praticamente inalterada. E gratuita. Nem a possível chegada de mais turistas — “uma fonte de rendimento muito grande” — faz a família mudar de ideias. “Isso era matar a memória do meu avô”, defende Madalena. “Isto sempre foi uma fábrica da freguesia [Maia], é nossa mas não é nossa, é de São Miguel. Seria uma traição fazer-lhes pagar uma chávena de chá.” No Verão, chegam a receber sete camionetas de turistas ao mesmo tempo. “Em Agosto são 400€ só para papel higiénico”, ri-se. “Oxalá” venham mais. “Estou preparada.”

O tempo foge-nos entre tanto calcorrear e já não chegamos a tempo de mergulhar na Caldeira Velha, mas ainda conseguimos subir à lagoa do Fogo e constatar aquilo que tanto nos tinham avisado: nos Açores, nuvens e nevoeiro correm numa dança permanente, ora velando ora descobrindo cada paisagem. Quando chegámos, uma cortina cerrada recebia-nos no miradouro e nem um palmo de lagoa se vislumbrava entre a neblina, para logo depois se revelar em panorâmica, como se o desejo mandasse na meteorologia. Mais um postal icónico da ilha, mas que nem por isso arrebataria o final do dia, poucos metros subidos até ao Pico da Barrosa, tão apoteótico quanto inesperado. Aos nossos pés, ilha e mar fizeram-se nuvens e o sol foi adormecendo sobre elas, tingindo o céu silencioso de dourados e laranjas.

Pouco depois, já em Ponta Delgada, passaríamos por baixo do arco central das Portas da Vila que, conta a lenda, nos faria ficar irremediavelmente apaixonados pela ilha. Mas São Miguel há muito que se entranhou e a vontade, mais do que em partir, está já no regresso.

Veja o artigo na integra em fugas.publico.pt/

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