Três dias no Faial e no Pico a serpentear de uma ponta à outra das ilhas. Um percurso errante, solitário, por entre nevoeiro e hortênsias, sempre com as baleias, a literatura e o topo de Portugal no horizonte.
- Acho que temos um furo.
- Já? Mas alugámos o carro há pouco mais de meia hora.
Enquanto troco o pneu lembro-me de um episódio do programa Top Gear, da BBC, em que Jeremy Clarkson, apresentador e dono de um colorido humor britânico, dizia não haver carro mais rápido no mundo do que um carro alugado. Estava na Nova Zelândia e tinha pela frente uma improvável corrida de 660 quilómetros contra o seu colega de programa, que seguia a bordo de um veleiro vencedor da America’s Cup, competição muitas vezes apelidada de Fórmula1 dos mares. Acelera a fundo no seu Toyota Corolla de ocasião, bate em todo o lado, é obrigado a trocar de viatura, mas acaba por perder. Na retina ficam as imagens de beleza da ilha.
O Faial não é a Nova Zelândia, nem eu sou (nem quero ser) o Jeremy Clarkson. Parece, contudo, existir um fio invisível que une todas as ilhas, mesmo aquelas que ficam do outro lado do mundo. Ou sobretudo aquelas que ficam em lados opostos do mundo. Apodera-se do viajante uma certa sofreguidão, uma urgência em querer visitar tudo, conhecer todas as praias, todos os miradouros,
todos os caminhos. Como se as ilhas fossem um mundo em ponto pequeno, uma estrada sem saída, feita para andarmos às voltas até não restar o mais pequeno segredo para descobrir.
A outra possibilidade, bem mais prosaica, terá a ver com o facto de nas ilhas sermos quase sempre obrigados a viajar num carro alugado. E como o aluguer se paga ao dia, quanto mais rápido melhor.
todos os caminhos. Como se as ilhas fossem um mundo em ponto pequeno, uma estrada sem saída, feita para andarmos às voltas até não restar o mais pequeno segredo para descobrir.
A outra possibilidade, bem mais prosaica, terá a ver com o facto de nas ilhas sermos quase sempre obrigados a viajar num carro alugado. E como o aluguer se paga ao dia, quanto mais rápido melhor.
- Já que estamos aqui, porque não aproveitamos para fazer um piquenique? – sugere a minha companheira de viagem, mais dada à contenção e contemplação do que a correrias filosóficas.
À nossa frente, o Morro de Castelo Branco. Um domo vulcânico resultante de uma erupção ocorrida há cerca de 30 mil anos, actualmente classificada como Reserva Natural e destino muito procurado pelas aves marinhas para nidificar, especialmente o cagarro, o garajau-comum e o frulho. Copio a tabuleta, está bom de ver, que de ornitologia e geologia nada sei — não consigo, ainda assim, ficar indiferente à natureza. À natureza açoriana. Da mesma forma que à maioria dos viajantes não será necessário ter um furo para acalmar o ritmo e levantar a cabeça, nesta ilha, nestas ilhas, não é necessário ser-se doutorado em questões ecológicas para que a paisagem nos engula.
Afinal, trata-se do segundo arquipélago mais belo do mundo, como há vários anos classificou a revista National Geographic, e o destino turístico mais sustentável do planeta, esta uma distinção mais recente (2014) concedida por um grupo de especialistas internacionais. “Aproveita para ir lá agora, porque a partir deste ano nunca mais nada será igual”, diz-me um amigo pouco antes da minha partida, referindo-se à chegada das companhias low cost ao arquipélago a partir desta Primavera. “Vai ser só ingleses e despedidas de solteiros. Ou autocarros cheios de velhotes.”
O progresso nem sempre gosta de destinos sustentáveis, já se sabe, e o que não falta são ex-paraísos para o provar, se bem que as autoridades responsáveis garantam que aqui tudo será diferente. Terá forçosamente que ser diferente, até porque a natureza intempestiva do arquipélago assim o obriga.
“Fique descansado que os Açores nunca serão o Algarve, Maiorca ou a Madeira. É mais fácil a natureza acabar com esta terra do que o próprio turismo.” Palavra de empregado de hotel.
O canto de Porto Pim
Dizer que este não é nem nunca será um destino de praia não é o mesmo que dizer que não há praias. Bem pelo contrário. Praias de areia grossa, preta, areais pequenos, escondidos, são vários os locais tão improváveis quanto belos. A Praia do Almoxarife, uma das maiores e com melhor acessibilidade, a poucos minutos da cidade Horta; a praia da Conceição e a incontornável praia de Porto Pim, ambas na capital; a praia da Fajã, na costa norte da ilha, em que o preto da areia contrasta com o verde da vegetação. Há também inúmeras piscinas naturais formadas por rochas vulcânicas (Castelo Branco ou Varadouro) e ainda pequenos portos que convidam a um mergulho, tais como Porto do Comprido, o Porto da Eira e o Porto da Feteira. Ou uma “simples” poça. A Poça da Rainha, por exemplo, na freguesia da Feteira, logo à saída da Horta. Um pequeno espaço de rocha basáltica, recentemente melhorado com solário e acesso directo ao mar.
- Está em casa, meio adoentado – oiço uma faialense responder, corpo na água, biquíni fora de época, quando um casal amigo lhe pergunta pelo marido.
- Eu nunca fico doente, não há nada que um mergulho nestas águas não curem – conclui.
Poucos metros ao lado, dois irmãos, com sete e doze anos, aproveitam as férias da escola e o improvável dia de sol para pescar.
- Queres experimentar? – perguntam-me.
- Nunca pesquei.
- É fácil. São apenas taínhas minúsculas. O meu avô caçava baleias.
Um curto diálogo numa viagem de poucas falas, mini road trip com mais estrada do que pessoas, se bem que estas estejam sempre presentes. Estão no Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio; estão nas Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão; estão na Mulher de Porto Pim, de António Tabucchi. Numa ilha como esta, com 172,43 km², 21 quilómetros de comprimento e 14 quilómetros de largura e apenas dois dias à disposição, nada como recorrer à literatura para arrepiar caminho.
É sobretudo a Mulher de Porto Pim quem nos guia. Um livro de difícil catalogação, entre o conto e a crónica, uma espécie de diário de viagens errante, metafísico, em que a realidade vive lado a lado com a ficção. Cerca de cem páginas com cheiro a baleia e atravessadas por uma beleza, uma força e uma solidão que retratam um tempo que já não existe — o livro foi editado pela primeira vez em 1983 — mas que ainda se sente. Eis um pequeno excerto: “O meu pai era baleeiro, como pai dele tinha sido, mas numa certa época do ano, quando as baleias não passam, dedicava-se à pesca da moreia, e nós íamos com ele, e a nossa mãe também. Agora isso já não se usa, mas quando eu era garoto praticava-se um rito que fazia parte da pesca. As moreias pescam-se de noite, quando a lua está na fase crescente, e para chamá-las usava-se uma canção que não tinha palavras. Era um canto, uma melodia, a princípio baixa e lânguida e depois aguda, nunca mais ouvi um canto com tamanha mágoa, parecia que vinha do fundo do mar ou de almas perdidas na noite, era um canto tão antigo como as nossas ilhas; agora já ninguém o conhece, perdeu-se, e talvez seja melhor assim, porque continha uma maldição, ou um destino, como que uma magia. O meu pai saía com o barco, era de noite, movia os remos devagar, a prumo, para não fazer ruído, e nós, eu, os meus irmãos e a minha mãe, sentávamo-nos na falésia e começávamos a entoar o canto.”
É à procura desse canto que andamos, para a frente e para trás, para dentro, para o interior da ilha, sem medo de nos perdermos, fazendo por nos perdermos, percorrendo todas as estradas de terra batida, catalogando todas as hortênsias, visitando todos os parques florestais e miradouros, sempre com o Pico no horizonte. O imponente e omnipresente Pico, como se ali tivesse sido colocado para que pudéssemos, também nós, levar para casa o nosso postal perfeito. Às vezes, e dependendo da localização ou do nevoeiro, São Jorge.
Se é verdade que todas as vistas vão dar ao mar e à ilha do Pico, não é menos verdade que todos os caminhos acabarão por ir dar à Caldeira — a cratera maior da ilha, com cerca de 400 metros de profundidade e dois quilómetros de diâmetro – e ao Vulcão dos Capelinhos, ambos parte integrante do Parque Natural do Faial. Um vulcão que agora é um ponto de romaria da ilha, mas que em 1957 foi responsável pela saída de milhares de habitantes. Este em actividade durante 13 meses.
- Não deixa de ser assustador pensar que foi há tão pouco tempo – oiço um grupo de amigos, continentais, comentar no Peter Café Sport, já na Horta.
- Eu não sei se conseguiria viver descansado com um monstro destes debaixo de mim, ainda que adormecido. Esta ilha tem, de facto, algo especial. Há qualquer coisa no mar, ou no ar, não sei...
António Tabucchi dá mais uma vez o tom: “As noites de Porto Pim são silenciosas, basta sussurrar no escuro para se ouvir ao longe. Deixa-me entrar, supliquei-lhe. Ela fechou a persiana e apagou a luz. A lua estava a nascer, com um véu vermelho de lua estival. Sentia uma inquietação, a água muralhava à minha volta, era tudo tão intenso e inalcançável, e lembrei-me de quando era garota e à noite, da falésia, chamava as moreias; e então tive um devaneio, não consegui conter-me, comecei a entoar aquele canto.”
No topo de Portugal
Peter Café Sport, o Monte da Guia (cone vulcânico de 145 metros de altura); praia de Porto Pim (uma das raras praias com areia fina e macia); a Horta, finalmente. A capital, cidade cosmopolita por excelência — dizem alguns guias com pompa e algum exagero — que continua a conservar uma arquitectura e uma aura muito próprias. Tal como o Peter. Se é verdade que o mais famoso bar da cidade já não será bem aquilo que sempre foi, hoje tem tanto de memória viva como de marca turística, continua, apesar de tudo, a ser um ponto de encontro incontornável. No balcão há ainda quem coloque bilhetes à procura de companhia para viagens de barco até ao continente ou até à América. É também ali que ainda se tomam as grandes decisões.
- Uma manhã e uma tarde, será que vale a pena?
Pergunta retórica, claro está. Bastam pouco mais de trinta minutos e menos de dez quilómetros para chegar à Madalena. Chegar à ilha do Pico não é, contudo, chegar apenas à ilha do Pico. Em nenhum outro local do país se pode estar mais perto do céu do que neste pequeno pedaço de terra que se ergue até aos 2351 metros de altitude e isso traz consigo uma natural dose de expectativa. Se para o escritor italiano esta “não é mais do que uma montanha alta e íngreme pousada sobre a água. Há nela três aldeias: Madalena, São Roque, e Lajes; o resto é rocha lavica sobre a qual desponta, aqui e ali, uma videira enfezada e alguns ananazes bravios”, para Raul Brandão “é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ele lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais do que uma ilha — é uma estátua erguida até ao céu e amolgada pelo fogo — é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.”
Mas primeiro há que alugar um carro.
- Estamos cheios. Vá ver ali ao lado, talvez consiga.
- Tem reserva?
- Para hoje já não temos nada. Talvez amanhã.
- Infelizmente não temos. A maior parte das pessoas trata de tudo com antecedência... Espere. Tenho um que vai ser entregue agora, mas não vamos ter tempo para limpar. Não se importa? Pode entregá-lo ao final do dia. Deixa ali naquele parque.
- E a chave?
- A chave pode ficar no porta luvas, ou na ignição. O que é que o ladrão pode fazer? Andar às voltas? Aqui ninguém se pode esconder.
Desta vez não houve tempo para andar às voltas, se bem que um dia seja suficiente para dar a volta à ilha. E, ao contrário do Faial, fica a sensação de que, aqui sim, nos poderíamos esconder eternamente. Pelo nevoeiro que resolveu levar consigo grande parte do horizonte; pela dimensão — é a segunda maior ilha do arquipélago, logo depois de São Miguel, com uma área de 447km2, 42 quilómetros de comprimento e 20 quilómetros de largura; pela própria geografia. A cor, a arquitectura, o chão, a paisagem, o horizonte, a musicalidade é outra.
Aqui (e agora) é o canto das baleias quem marca o ritmo — o último cachalote terá sido caçado em 1987, na vila de Lajes do Pico —, canto que todos os anos chama até si milhares de pessoas. Baleias e golfinhos, sendo possível encontrar mais de vinte tipo de cetáceos diferentes. São um dos grandes tesouros da ilha, juntamente com a sua vinha, as tais “videiras enfezadas” que brotam do solo vulcânico e que em 2004 foram classificadas como Património da Humanidade pela UNESCO.
O Pico? O Pico não é bem um tesouro. É apenas uma montanha alta e íngreme pousada sobre a água, uma estátua erguida até ao céu, natureza viva que todos os portugueses deveriam ter o direito de poder tocar.
GUIA PRÁTICO
Como ir
A TAP (www.flytap.com) e a SATA (www.sata.pt) voam desde o continente para a Horta. Para chegar à ilha do Pico o ideal é apanhar um barco. Há várias ligações diárias (www.transmacor.pt) desde a capital do Faial em direcção à Madalena, viagem que dura menos de uma hora. O bilhete custa 3,40 euros, sendo que as crianças até aos três anos de idade não pagam. Entre os quatro e os 14 têm 50% de desconto.
Quando ir
Não é exagero dizer que qualquer época é boa para visitar os Açores. Nunca esquecendo que a chuva também pode aparecer mesmo no mais soalheiro dos meses. Mas este é também um dos seus encantos. A humidade é, por isso, uma constante e faz com que o verde e a natureza estejam sempre pungentes. Para quem quiser observar os cetáceos, a melhor época é entre Abril a Setembro.
Onde dormir
São várias e muito distintas as possibilidades de alojamento, desde hotéis mais convencionais até pequenos turismos de charme, sobretudo no Pico. No Faial há duas opções incontornáveis que garantem uma boa relação qualidade/preço: o Faial Resort Hotel (www.faialresorthotelhorta.com) e a Pousada da Horta. O primeiro fica situado numa das encostas da cidade, com restaurante e piscina de peito aberto para a baía e para o Pico. Tem 131 quartos distribuídos por vários edifícios. Já a Pousada da Horta, parte integrante das Pousadas de Portugal, fica alguns metros abaixo, no Forte de Santa Cruz, um edifício militar do século XVI com 28 quartos. As Casas D’Arramada (www.ruralturazores.com), turismo rural localizado zona norte da cidade, são também uma boa opção. Têm piscina coberta e aquecida com vista para o Atlântico.
Na ilha do Pico são já famosos os seus alojamentos de charme. O Pocinho Bay, com apenas seis quartos, está na linha da frente dos mais conceituados, um espaço cheio de sensibilidade e bom gosto localizado no coração da zona protegida da vinha do Pico. Com vista para o Faial. Adegas do Pico, um conjunto de dez casas de basalto, e o L’Escale de l’Atlantique, apenas com três quartos, são outros dois bons nomes a ter em conta.
Onde comer
Falar em Açores é também falar em gastronomia. Sopas do Espírito Santo, linguiça com inhames, morcela de sangue, caldeirada de peixe, lapas grelhadas, polvo guisado com vinho tinto, lagostas, caranguejos, cavacos e santolas, queijo branco fresco do Pico, eis algumas das iguarias. O Canto da Doca, na Horta, junto ao porto, o Pasquinha, na freguesia de Salão, ou o Esconderijo, em Cedros, são três nomes seguros. Em Cedros existe também uma pizzaria, Pizza Nova, que vale a pena conhecer. Pela localização e pela massa, afinal o pizzaiolo é um italiano que se apaixonou pela ilha e se mudou de armas e bagagens com a família. Na ilha do Pico, o Fonte Cuisine (Lajes do Pico), Canto do Paco (São Roque) ou a Marisqueira Ancoradouro (Madalena) têm fama de não desiludir quem por lá passa.
O que fazer
Passeios de BTT, caminhadas, observação de cetáceos, observação de aves, nadar com golfinhos, mergulhar com tubarões — são inúmeras as actividades em qualquer uma duas ilhas. Quase sempre ligadas à natureza. Há vários operadores disponíveis, sobretudo no que se refere à observação de baleias, um dos maiores ex-líbris da região. Caminhar até ao ponto mais alto de Portugal é também uma das aventuras maiores e para isso nada como recorrer a empresas especializadas, por uma questão de segurança. Ainda na ilha do Pico é difícil resistir à passagem pelo Museu dos Baleeiros (Rua dos Baleeiros, 13, Lajes do Pico), e pela Paisagem da Cultura da Vinha - Património Mundial da UNESCO, que ocupa uma área total de cerca de 150 hectares. Na ilha azul (foi assim baptizada devido ao elevado número de hortênsias) é o Parque Natural do Faial quem mais ordena. Um parque que já foi distinguido pela Comissão Europeia, composto por 13 áreas protegidas e que ocupa 18% do território. Entre elas o Vulcão dos Capelinhos, que tem um centro de interpretação aberto durante todo o ano. Quem não quiser (ou puder) ir até ao Pico, também pode ficar a conhecer a cultura baleeira na Fábrica da Baleia de Porto Pim. O Jardim Botânico Faial, no Vale dos Flamengos, também merece uma visita.
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